Querida avó,
Para mim, o Dia de Finados, que é celebrado este fim de semana, não tem significado nenhum. No entanto, para muitos, tem um significado muito profundo.
Os meus avós, viviam estes dias com uma solenidade que hoje quase se perdeu. Lembro-me que se preparavam com antecedência, limpavam as campas, enfeitavam-nas com flores frescas – quase sempre crisântemos, porque eram as flores “do respeito” – e, no próprio dia, toda a aldeia parecia mover-se em silêncio, num mesmo compasso de saudade.
Antigamente, o luto era um ritual que se carregava no corpo e na alma. As viúvas vestiam preto durante anos. Muitas ficavam de lenço e meias pretas por toda a vida, fosse verão ou inverno, imagina. Hoje, o luto tornou-se mais discreto, mais interior; já não se usa tanto a roupa escura nem as longas cerimónias, mas a dor continua lá – talvez apenas mais escondida.
Já não existem carpideiras. Mas continuamos a chorar, diante de uma fotografia ou de uma lembrança. Cada um tem a sua forma de chorar a saudade dos que já partiram.
As formas de enterro também mudaram muito. Antes, quase todos eram enterrados no cemitério local, com uma campa simples e uma cruz. Agora há cremações, cinzas guardadas em urnas ou espalhadas no mar, funerais laicos, cerimónias personalizadas… é como se cada um procurasse a sua própria maneira de se despedir.
Numa ida ao cemitério, com os meus avós, lembro-me de ter assistido a uma discussão entre o Sr. Boa-Morte, o coveiro, e umas devotas que “viviam” no sepulcrário.
Umas queriam que os portões do cemitério fossem de ferro, outras gostariam que os mesmos fossem em alumínio. Nisto o Sr. Boa-Morte, o coveiro diz:
«Os que estão fora não querem entrar. Os que estão dentro não podem sair! Como não chegaram a nenhum consenso, os portões vão continuar a ser de madeira, tenho dito!».
O importante é lembrar com amor, porque é a memória que mantém vivos os que partiram.
Bjs
Querido neto,
As tias que me criaram tinham o culto exacerbado da morte. Não ligavam aos vivos – mas ninguém lhes levava a palma no choro pelos mortos.
Uma vez cortaram relações com um irmão.
O senhor morreu – e, não só passou imediatamente à categoria de Santo, como deu início a um ritual que se prolongou até muito depois de eu ter saído lá de casa: as quartas feiras no Alto de São João.
Levavam banquinhos e um cesto para onde tinham enfiado esfregões, sabão macaco, trapos velhos.
Chegavam junto da campa do irmão e vá de lavar e esfregar tudo.
Um dia olharam em volta e acharam que a sua missão estava incompleta. A partir daí, assim que entravam no cemitério chamavam pelo Sr. Salvador, que era o coveiro, que começou a ter por missão pô-las a par das últimas aquisições do cemitério, ou seja, quem tinha morrido naquela semana.
E as minhas tias desatavam a limpar todas as campas como se não houvesse amanhã.
Dava para eu me sentar num dos banquinhos e ler o “Mosquito” de uma ponta à outra.
Novembro era o seu mês de eleição. Naqueles dois primeiros dias nada mais existia para elas.
Como bem se pode entender, fiquei vacinada contra o “espetáculo” mórbido da morte.
Cemitério é lugar onde raramente entro.
Até porque, para mim, não só não há um dia marcado para recordar os meus mortos, como eles não estão nos cemitérios: estão no meu coração, andam por aí, sinto-os sempre vivos e até falo com eles…
Só gosto de os recordar em alegria, por isso quando chega o Dia de Finados, penso nas tias – e encho a casa de flores (nunca de crisântemos!) para festejar aqueles que, embora invisíveis, nunca deixaram de estar ao pé de mim.
O Francisco Pinto Balsemão é um desses amigos que irei recordar eternamente!
Trabalhei durante algum tempo no Diário Popular, que pertencia à família Balsemão.
Daí nasceu uma amizade para o resto da vida.
Vai fazer-nos muita falta.
Bjs