Na primeira parte desta crónica abordei a complexidade do tema, sobretudo na ótica liberal. A questão ficaria rapidamente sanada para dois extremos: para os que desconfiam de tudo o que é muçulmano e diferente, rejeitando a sua cultura tout court; e para aqueles que, em nome de um relativismo cultural que igualiza o que não é igual, se presta a aceitar atropelos a direitos humanos em nome do respeito por culturas diametralmente opostas – sobretudo no respeito, ou falta dele, dessas culturas por esses mesmos direitos.
Um exemplo. A mesmíssima cultura opressora talibã que foi relativizada em Portugal pela esquerda radical, que a considerou «digna de um segundo olhar», é agora defendida através de um dos seus símbolos de opressão, a burqa. A mesmíssima esquerda que passou os últimos dez anos a brandir contra as micro-agressões, contra pronomes mal empregues, a favor do direito de homens biológicos poderem concorrer em competições femininas, a praticar a cultura de cancelamento e a lutar contra a «opressão do heteropatriarcado e da cisheteronormatividade» digna-se agora a defender um símbolo profundamente opressivo das mulheres em nome da sua liberdade individual – é o escravo que o quer ser. É filosoficamente insustentável defender, por um lado, uma visão radical de autodeterminação e expressão individual (como nos debates de género) e, por outro, defender um símbolo cujo único propósito é a anulação da identidade e da expressão individual da mulher – que é precisamente para isso que a burqa serve.
O argumento da liberdade individual não deixa de se aplicar, é certo, mas a liberdade de um indivíduo não se esgota na sua esfera pessoal. A sua existência existe num determinado espaço social, privado e público, que exige responsabilidade e regras para uma convivência sã e onde os indivíduos se mostram uns aos outros, para parafrasear Hannah Arendt. Aliás, o mesmo argumento da liberdade individual poderia ser usado para legitimar que as pessoas pudessem andar nuas na rua. Em ambos os casos aplica-se o princípio do dano de John Stuart Mill: o uso da burqa causa dano à ordem social, no sentido em que uma sociedade aberta baseia-se na interação, comunicação e reconhecimento mútuo, sendo que a burqa é uma barreira literal a essa interação, privatizando a identidade num espaço que é comum, pelo que pode justificar-se cercear essa liberdade.
Importa também desmontar a ideia de que o uso da burqa é uma questão de liberdade religiosa. Para além do Corão não recomendar o uso da burqa ou sequer a mencionar (o que refere aproxima-se mais do hijab como forma de garantir uma aparência modesta), se o seu uso fosse condição sine qua non para a profissão da fé islâmica, então os homens muçulmanos estariam também eles condicionados, visto que não a usam.
Resta acrescentar que no Egito, o país de origem da Tamis, que apresentei na primeira parte desta crónica, a burqa foi proibida em escolas, sucedendo a uma proibição da Universidade do Cairo das suas docentes usarem um véu facial. Proibir a burqa não é um ato de intolerância contra os muçulmanos, até porque os próprios também o fazem, mas sim um ato de fidelidade aos princípios fundadores da sociedade aberta — igualdade, liberdade individual (para todos, não apenas no uso de vestes) e a reciprocidade do espaço público. É uma defesa da liberdade contra os seus símbolos de aniquilação.
É precisamente este o ponto político que tem mérito nesta discussão sobre a burqa: não questões de segurança (que podem ser dirimidas pelas autoridades, solicitando a remoção do véu quando se justifique), não questões de liberdade religiosa (que não se aplicam) e não por questões da liberdade de cada um a ser subjugado. No final do dia, o fiel da balança é se queremos defender que no nosso espaço territorial a que chamamos nação os direitos humanos prevaleçam. Eu votei a favor.