A Ordem tem recebido queixas de médicos do privado que se sentem pressionados a ‘obrigar’ os doentes a gastar mais dinheiro, seja em consultas desnecessárias, exames ou outros?
Não me têm chegado essas queixas de médicos. A Ordem dos Médicos não pactua com qualquer forma de pressão comercial sobre a decisão clínica. A autonomia clínica é inegociável e o ato médico deve ser guiado pela evidência cientifica.
Havendo as reuniões de incentivos nos hospitais privados, o SOL sabe que há médicos que receiam ser despedidos se não pactuarem com essas situações. O que diz a Ordem?
Se um médico sente a sua autonomia ameaçada por recusar atos clínicos desnecessários, isso é uma situação considerada grave e inadmissível. Nenhuma hierarquia empresarial se pode sobrepor à deontologia e ao dever clínico. As situações concretas devem-nos ser comunicadas para serem analisadas, daremos acompanhamento deontológico e promoveremos as diligências junto das entidades competentes. Apesar de tudo é importante sublinhar que a Ordem dos Médicos condenará qualquer prática que estimule ou promova o não cumprimento dos três princípios evocados atrás: atendimento com humanismo, transparência e evidência científica.
A Ordem, juntamente com a Direção-Geral de Saúde, elaborou manuais de procedimento, alguns dos quais têm muitos anos. Durante a Troika, foram estipuladas normas de orientação clínica para desincentivar o aumento de despesas. Há algum estudo durante e depois desse período?
As normas e orientações clínicas são instrumentos para melhor cuidado e maior valor em saúde, não meros travões de despesa. É sempre nesse prisma que têm de ser vistas. Sobre eficiência, o estudo “Uma abordagem macroeconómica à eficiência relativa do sistema de saúde português” (Banco de Portugal, out. 2023) assinala que Portugal melhorou a eficiência entre 2014 e 2019, situando-se, tipicamente, em posição intermédia na área do euro. Esse tipo de análise é útil, mas não substitui auditorias clínicas nem a avaliação de resultados em saúde.
Por outro lado, as normas de orientação clínica permitem à Ordem perceber se os médicos do privado são pressionados?
As normas definem o que deve ser feito, a pressão indevida pode ser detetada pelas entidades competentes através de queixas, auditorias clínicas e padrões anómalos (p. ex., variações abruptas de codificação ou de volumes sem justificação clínica). É um papel do Ministério da Saúde, da IGAS ou da ERS. A Ordem recebe e analisa todas as queixas e, estando no âmbito ético e deontológico, atua.
Não faz falta um acordo com a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada para defender os médicos?
A Ordem não é sindicato nem negociadora salarial, mas é garante de ética, qualidade e dignidade profissional. Estamos disponíveis para dialogar com a APHP e demais entidades para uma Carta de Princípios de Boa Governança Clínica, com compromissos como:
– Autonomia clínica protegida por escrito.
– Proibição de incentivos que induzam sobreutilização, sem evidêcia clínica.
– Transparência de conflitos de interesse
– Indicadores de qualidade e segurança públicos.
– Mecanismos de avaliação e reporte para profissionais e doentes.
Como reage a Ordem à denúncia de que médicos dermatologistas, no público, chegam a receber 51 mil euros por apenas uma cirurgia, ao abrigo do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia? Se a notícia da TVI/CNN é de março, qual a razão para o facto ainda não ter sido esclarecido?
Sem conhecer o caso em detalhe, porque nunca foi enviado à Ordem dos Médicos, não podemos comentar. Se se confirmar alguma anomalia, é inaceitável. Mas o essencial é fechar as vulnerabilidades do sistema. Recordo as propostas que apresentámos a 30 de maio publicamente e ao Ministério da Saúde:
• Validação clínica independente dos atos codificados, verificações regulares para garantir correspondência entre registo e realidade.
• Sistemas de alerta precoce centralizados na Direção Executiva do SNS, deteção automática de padrões anómalos.
• Controlo externo regular, auditorias independentes com peritos.
• Avaliação de resultados, qualidade, segurança e valor em saúde, não apenas produção.
• Inclusão formal da Ordem dos Médicos na operacionalização, monitorização e avaliação – apoio técnico e deontológico.
Defendemos ainda um cronograma público de auditorias e correções sempre que surjam indícios relevantes.
Com as esperas prolongadas para consultas de dermatologia, e não só, no SNS, os doentes deparam-se agora com a inexistência, cada vez maior, de médicos com contrato com as seguradoras. Qual a razão para esta situação e como acha a Ordem que se poderá resolver?
Há várias causas que se cruzam. As tabelas de honorários praticadas pelas seguradoras estão desajustadas da realidade e da complexidade atual da medicina. E o próprio desgaste acumulado no SNS leva muitos médicos a não ter disponibilidade para trabalhar no setor convencionado.
O resultado é visível, doentes que esperam demasiado tempo e médicos que sentem que o seu tempo e a sua competência não são valorizados.
A Ordem dos Médicos não interfere em matérias contratuais, mas tem um papel essencial na defesa da qualidade e da dignidade do ato médico e da sua complexidade. Por isso, defendemos que um diálogo entre seguradoras, prestadores e médicos feito com seriedade e transparência. O essencial é garantir que o modelo remuneratório reflete o valor clínico do trabalho médico e que a autonomia de decisão está protegida.
Quantos médicos recém-formados vão trabalhar, anualmente, para outros países europeus, até para colmatarem a falta de um milhão e duzentos mil médicos na Europa?
Em 2024, a Ordem emitiu 972 certidões de Good Standing. Este número não equivale ao de médicos que emigram (uma certidão pode ser pedida por vários motivos e não implica saída efetiva). Mas seguramente, todos os anos saem do país cerca de 800 médicos. Preocupa-nos, contudo, a falta atração e retenção de talento em Portugal.
Quantos médicos estrangeiros a trabalhar em Portugal estão registados na Ordem?
Estão inscritos na Ordem 5.530 médicos estrangeiros. É um contributo relevante e bem vindo para o país. A exigência é a mesma para todos:qualificação, ética e qualidade. Apoiamos a integração com equivalência rigorosa, formação deontológica e, quando necessário, apoio linguístico para garantir segurança clínica e comunicação eficaz.