Edmundo Inácio. “À medida que as lágrimas caíam, a canção apareceu”

Há um novo single para ouvir, trabalho de Edmundo Inácio que fala sobre a sensação de desenraizamento. É uma mistura entre o tradicional e o contemporâneo, como o artista já nos habituou

Edmundo Inácio é um nome que em Portugal tem ainda espaço para crescer. Quem acompanhou o The Voice, da RTP1, conhece bem o estilo do artista, que mistura o tradicional com o contemporâneo, havendo ainda quem o conheça pela canção “A Festa”, que levou ao Festival da Canção em 2023, tendo conquistado o segundo lugar.

E o seu lugar de destaque na música portuguesa é merecido: Edmundo Inácio inspira-se nas suas raízes algarvias e nas vivências que daí resultaram, criando canções que soam autênticas e profundamente ligadas à sua identidade.

As raízes são, aliás, o mote do novo single, “Terra”, que fala sobre o sonho, o desenraizamento e a dualidade entre ficar e partir. A canção representa uma nova fase na carreira de Edmundo Inácio, fazendo parte do próximo álbum Vida de Cão, que é o reflexo da evolução de Edmundo Inácio enquanto artista e compositor.

Em entrevista à VERSA, Edmundo fala-nos sobre o percurso até aqui e o seu mais recente trabalho. 

O novo single “Terra” fala sobre a necessidade de seguires os teus sonhos e de seres arrancado fisicamente das próprias raízes. Que experiências pessoais inspiraram esta canção?

A “Terra” nasceu num momento em que eu próprio estava a viver essa sensação de desenraizamento. Cresci em Portimão, no Algarve, um lugar cheio de memórias, de cheiros, do equilíbrio entre a beleza do mar e do campo, mas também um lugar onde os meus sonhos não tinham como evoluir.

Aos 18 anos fui estudar para Inglaterra e, mais tarde, trabalhei em Lisboa. Foi assim que percebi que cada partida deixava um bocadinho de mim para trás. Foram sempre decisões difíceis: tive de deixar a família, os avós, a calma. Mas foi também uma escolha necessária para crescer.

Num dos dias em que fui visitar os meus avós, aquela despedida mexeu comigo. A minha avó tem sempre a mesma estratégia para me manter o máximo de tempo possível perto dela: segura-me as mãos, faz aquela carinha de avó fofinha e pergunta quanto tempo vou estar fora e quando volto a visitá-la. Não sei porquê, mas naquele dia esse gesto tocou-me de forma diferente. Talvez fosse o medo de um dia voltar a casa e já não a ter à minha espera. Nesse momento percebi o peso e a beleza de partir.

Fiquei emocionado e, quando cheguei a casa dos meus pais, sentei-me na secretária, espalhei fotografias antigas da família pela mesa e, à medida que as lágrimas caíam, a canção apareceu.

Há também um lado político ou social neste tema, ou é sobretudo um retrato pessoal?

É um retrato pessoal, mas acredito que o pessoal é sempre político. Falar sobre sair da nossa terra é, inevitavelmente, falar sobre desigualdade, sobre centralização, sobre o sonho e o sacrifício. Muita gente no interior ou no sul do país sente que precisa de partir para ser ouvida ou alcançar os seus objetivos. Nesse sentido, a “Terra” é tanto a minha história como a de muitos outros.

“Terra” é a segunda amostra do teu próximo álbum. O que podemos esperar deste novo trabalho?

Este novo disco é, curiosamente, o meu trabalho mais luminoso até agora. Apesar de nascer da luta e do cansaço, é um álbum sobre esperança, movimento e liberdade. Tem uma energia mais solar, inspirada na infância e naquilo que ouvia e ainda oiço. 

É um disco musicalmente rico, com influências principalmente dos anos 80, mas também dos 50, 60 e 70, com uma pitada da música atual. Reflete o quanto tenho estado mais próximo de casa, porque carrega muito das minhas raízes algarvias e das minhas grandes referências musicais e pessoais. 

É um projeto cheio de cores sonoras e, para mim, mais sólido e maduro que o primeiro. Sinto-me realizado e muito mais confiante como compositor e produtor. Estou muito feliz com o resultado e ansioso por mostrá-lo ao mundo.

Como encontras o equilíbrio entre a alma popular portuguesa e os sons contemporâneos nas tuas canções?

Para mim é um equilíbrio natural. Cresci a ouvir música popular portuguesa, mas também António Variações, Amália Rodrigues, Carlos Paião, Ney Matogrosso, Diabo na Cruz, Queen, Beatles, Stromae, Humanos… Quando escrevo, essas influências misturam-se sem esforço, e, neste momento, aceito-as ainda mais. 

Gosto de pensar que as minhas canções têm cheiro a mar, o timbre do vento, batida eletrónica, tradição e futuro a dançar juntos. Gosto muito daquilo que faço e acredito que isso se nota. Misturar tudo o que gosto é fácil, mas é preciso tempo: horas, dias ou até meses para amadurecer certos casamentos sonoros.

Desde o The Voice Portugal até ao Festival da Canção e ao teu álbum Vai-se Andando?, como vês a tua evolução enquanto artista e compositor?

Vejo um caminho de libertação e amadurecimento. O The Voice foi muito importante para me encontrar enquanto intérprete, descobrir o que gosto de cantar e o que me assenta na voz, mas também para voltar a acreditar na música como carreira. 

No Festival da Canção encontrei-me enquanto compositor e percebi de que forma quero contar as minhas histórias e olhar para o mundo atual. 

O Vai-se Andando? foi o compilar de tudo isso. Um processo mais sofrido do que o atual, porque no primeiro disco lidei com a pressão de querer compor um álbum inteiro, algo que nunca tinha feito. Foi bom lidar com a frustração e o desespero de ver coisas boas a nascer, mas também muitas canções que nunca verão a luz do dia. No fim, é um disco de que me orgulho e que marcou o início de tudo enquanto letrista e compositor.

Agora, com o novo disco, sinto-me mais dono de mim. Já não tenho medo de mostrar todas as minhas camadas. É um trabalho fresco, com humor, fragilidade, alegria e tristeza, cheio de cores, capítulos e momentos. Diria que, enquanto o primeiro disco foi um jantar, este segundo serão todas as refeições do dia.

Recentemente colaboraste com o Diogo Piçarra no tema “Volta”. Como nasceu essa parceria e o que mais te marcou nesse encontro artístico?

A “Volta” nasceu de uma admiração mútua e de uma amizade que foi crescendo. O Diogo é alguém muito generoso, que me recebeu de braços abertos e acreditou na minha voz e criatividade para reinterpretar uma das suas canções. 

Deu-me liberdade total para fazer o que quisesse e, sendo esta a minha canção favorita dele, não podia fazer menos do que respeitá-la ao máximo. Foi uma colaboração muito natural e prazerosa. O Diogo foi o meu mentor no The Voice e o primeiro artista que adicionei no Spotify. Somos ambos algarvios e esta canção tem um espaço especial nos nossos corações. O que mais me marcou foi a forma como ele respeitou a minha identidade e, ao mesmo tempo, me deixou trazer uma nova dimensão à canção.

O teu visual é sempre marcante. Que papel tem a moda na tua identidade artística? É uma extensão da tua música?

Completamente. A moda é uma forma de cantar sem som, de trazer uma mensagem ou uma energia única ao momento. É através da roupa que muitas vezes consigo expressar aquilo que as palavras não dizem. 

Gosto de brincar com o género, com o contraste entre o popular e o futurista, tal como faço na música. Para mim, a imagem é parte da canção, não vem depois. Tudo é pensado e tem um propósito. Na segunda gala do The Voice resolvi pintar os olhos; na terceira, as unhas, e os figurinos também foram evoluindo e ganhando mais expressão. Com essa evolução comecei a receber várias mensagens de jovens a dizer o quão importante isso era para eles. 

Percebi que, quando temos visibilidade, podemos usá-la para ajudar outras pessoas. E pensei: um dia poderei ter filhos ou sobrinhos e quero que se sintam abraçados desde sempre. Gosto de acreditar que a minha forma de ser e estar ajuda jovens a encontrarem-se e a não se sentirem uma carta fora do baralho, como a sociedade às vezes tenta fazer. 

É uma forma de acolher mentalidades que abraçam a diferença, mas também de sacudir as mentes de quem insiste em viver no passado.

Como pensas o lado performativo dos teus concertos? É algo que nasce com a música ou desenvolves depois?

Normalmente, nasce com a música. Quando estou a compor, já imagino como quero que aquela canção viva em palco: o corpo, o movimento, o olhar com o público. Mas depois há um trabalho de encenação e narrativa que acrescento mais tarde. 

Gosto de criar espetáculos que contem uma história, nos quais cada canção é um capítulo. Os videoclipes e as fotografias também nascem em conjunto com a canção. Tive uma formação artística ampla, talvez por isso crie dessa forma.

Vais continuar a explorar a fusão entre o tradicional e o contemporâneo, ou há surpresas a caminho?

Essa fusão faz parte de quem sou, por isso vai continuar, mas há sempre espaço para surpresas. O próximo disco é mais alegre, mais livre e talvez o trabalho em que mais me diverti a experimentar. A tradição continua lá, mas com outro fôlego. Acho que, no fundo, é isso: reinventar as raízes sem as perder. Ahhh… e o nome do próximo disco: Vida de Cão.