O Matuto gosta de livrarias. Facto. Se o estimado leitor não partilha do mesmo sentimento, pode desembarcar desta crónica, porque de livrarias se falará.
O Matuto frequenta livrarias por devoção antiga. Hábito. Traquejo. É uma rotina, dessas que se colam à alma como cheiro de pão quente. Entrar numa livraria é, para ele, um gesto sagrado: fala-se baixo, anda-se devagar, e cada um procura o seu milagre. O sino da porta tilinta com humildade, o chão range com prudência, e o ar tem aquele perfume de papel, cola e eternidade que só os livros sabem exalar.
“Quando penso no paraíso, imagino sempre uma livraria” – esta frase de Jorge Luis Borges, sempre vem à mente do Matuto quando entra numa. Há um ‘paraíso’ assim, em Rochester, Inglaterra. Na ‘High Street’ – a rua principal da cidade – no número 19, encontra-se a Baggins Book Bazaar. Para lavar os olhos pode o leitor ir aqui. Este espaço está cheio de referências literárias. Desde logo o nome Baggins que nos leva ao universo Tolkiano, e o seu simpático ‘hobbit’, Bilbo Baggins. Além disso Rochester é a terra de Charles Dickens. O Matuto tem a memória em brasa, com deambulações pelas salas infindáveis da Baggins, especializada em livros em segunda mão, mastigados pelo tempo. Bom, naquele tempo, as libras eram escassas e o Matuto contava os ‘pennies’. Os livros que não cabiam no orçamento eram cuidadosamente escondidos atrás dum vão de escadas, entre uma pilha desarrumada de livros, nas dobras duma cortina, etc. Numa visita posterior, esses livros seriam alegremente resgatados do seu exílio. O Matuto desconfia que ainda haja livros escondidos na Baggins, esperando uma visita redentora do Matuto. O dono era um típico gentleman de ar grave, e óculos que residiam na ponta do nariz desafiando a força de gravidade. Cada livro era embrulhado por ele em papel pardo, como quem benze uma hóstia impressa.
Outra livraria que habita na memória afectiva do Matuto, é também um espaço de livros em segunda mão. Quando o Matuto andava por lá – nos anos 80 e 90 – era a única livraria que fazia as malas e desaparecia ao fim da tarde, para pernoitar toda empacotadinha. Pela manhã, renascia. O espaço da livraria, acontecia entre a porta do prédio e as escadas que davam para a Academia dos Amadores de Música. Era o número 18 da Rua Nova da Trindade, em Lisboa. O prédio (de 1840) continua por lá e hoje alberga o “Bairro do Avillez”. O aproveitamento da área era habilidoso e até uma correnteza de caixas de correio era usada para prateleira de livros de poesia. Aí o Matuto teve o primeiro contacto com Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Esta livraria, empacotadinha, encaixava suavemente no espírito labiríntico do Chiado de antanho. O dédalo de travessas e vielas, era recheado de lojinhas e cafezinhos que o Matuto visitava numa doce peregrinação. Tudo começava no cimo das Escadinhas de Santa Justa, espreitando as novidades literárias da Livraria Portugal, à sombra do Elevador. O Matuto subia o Rua do Carmo, guinava à direita no Grandella e escalava a Rua Garrett, onde se colocava o dilema: Bertrand ou Sá da Costa. As salas da Bertrand eram barrocas. Ali o Matuto deliciava-se com os álbuns de Banda Desenhada: Corto Maltese, Asterix, Lucky Luke, Michel Vaillant… Na Sá da Costa, as edições dos clássicos (especialmente o Eça) eram carinhosamente manuseadas. Dali o Matuto voava que nem uma seta para a Barateira, no número 16 da Rua Nova da Trindade. Livros em segunda mão, em barda. Para gente de bolsos leves. O Matuto comprava “O Grego”, de Pierre Rey, “Ulisses”, de James Joyce, “As Três Sereias”, de Irving Wallace – livro que era meio clandestino em Portugal, mesmo na década de 80. Quando viu o livro nas mãos do Matuto, a menina da loja, arqueou as sobrancelhas numa interrogação muda e o Matuto susteve a respiração. Depois vinha a livraria vizinha, a tal ‘nómada’ que vivia num vão de escada. Cheio de letras na alma, o Matuto galgava as escadas até à Academia dos Amadores de Música, onde cada nota de solfejo fazia contraponto com os heróis dos seus livros, e as palavras dançavam entre partituras e claves de sol.
Na verdade, também há livrarias que moram nas histórias dos livros. O Matuto por vezes, passeia nelas como quem visita parentes amigos: a livraria perdida de A Sombra do Vento, o labirinto envenenado de O Nome da Rosa, a humilde loja de A Livraria de Penelope Fitzgerald, onde cada cliente é um acto de resistência contra a mediocridade. “Cada livro tem alma”, diz Zafón, e o Matuto acredita — mais: sente que as livrarias são o corpo onde essas almas descansam.
Agora, com o mundo a comprar palavras em formato névoa digital, o Matuto sente um aperto. As livrarias fecham uma a uma, como janelas ao fim da tarde. A Barateira e a Portugal fecharam portas em 2012, e no lance de escadas da Academia haverá um alemão alto e louro a bebericar um gin tónico. Todavia, o Matuto gosta de pensar que sempre haverá um castiço vão de escadas, com cheiro a tinta e sonho — e lá dentro, um homem gordo e barrigudo, coçando a barba de chapéu na mão, a escolher devagar o seu pedaço de eternidade, numa pose anagógica.
Lá fora, a chuva martela impiedosa as vidraças da ‘Casa das Pontes’, a desenhar rios de vidro; cada gota sussurra memórias de livrarias antigas, enquanto o Matuto, dentro, sente o tempo escorrer entre livros e sombras.