‘A coisa mais estranha que vi foi um recluso a comer um casco de sapateira’

O que fazem, o que comem e como se vestem os reclusos? Como ocupam o tempo? O testemunho de um guarda prisional deixa-nos espreitar pelo buraco da fechadura para o interior de uma prisão portuguesa. Apesar dos episódios chocantes, este ‘não é um mundo sempre em guerra’.

Gostava que me falasse sobre a vida no interior de uma cadeia portuguesa. Para começar, perdoe a minha ignorância, mas um guarda prisional é um polícia ou não?

Não. Somos considerados forças de segurança, mas não somos órgão de polícia criminal. Só temos autoridade na custódia do recluso ou dentro das instalações do Estabelecimento Prisional [EP]. Cá fora, quando estou a custodiar alguém – num tribunal, num hospital, seja o que for – tenho essa autoridade sobre o recluso e sobre as pessoas que se aproximam. Mas não posso, por exemplo, ir na rua, ver uma situação qualquer e dizer: ‘Estás detido’. Aí, sou praticamente um civil, só tenho uso e porte de arma.

A formação de um guarda prisional passa por o quê?

Basicamente, é igual ao processo das forças de segurança, depois podem variar os parâmetros de altura, de quantas flexões fazem, quanta corrida. Acontece que entre o fim do concurso e a admissão há uma fase de espera. E o indivíduo que concorre à guarda prisional é alguém que tem apetência para as fardas e, além da guarda prisional, vai concorrer à PSP e à GNR. Com a vantagem de que na GNR e na PSP há muito mais alternativas. Pode ir para a Cavalaria, Brigada de Trânsito, Unidade Especial, Brigada Territorial. No nosso caso só varia a prisão. E pode um dia haver um concurso para o GISP, que é a nossa unidade especial, que também esteve anos sem abrir.

O que é essa unidade especial?

O GISP, o Grupo de Intervenção dos Serviços Prisionais, faz o transporte de reclusos perigosos. Se houver um julgamento de indivíduos da máfia, de traficantes, de membros do PCC [Primeiro Comando da Capital, a maior organização criminosa do Brasil], eles fazem todo o acompanhamento. São aqueles homens mais armados, todos vestidos de preto, muitas vezes com passa-montanhas. Têm um tipo de formação completamente diferente, estão ao nível de uma unidade especial. E também fazem a manutenção da ordem prisional. Se houver um motim que as equipas locais não conseguem resolver, eles têm que entrar. Quando existem buscas mais complicadas, também são eles que as fazem.

Têm muitos reclusos problemáticos?

Hoje em dia, muito por conta das drogas, temos indivíduos com surtos psicóticos complicados. Indivíduos que mataram na cela e começaram a comer o do lado. Ou pode-lhes dar um surto e começarem a agredir toda a gente à paulada, só porque sim. Quando fazem uma coisa dessas são separados.

É o que se chama a solitária?

Não, a solitária já não existe. Agora temos as células disciplinares e de privação. Imagine que você é apanhado com o telemóvel, vai para uma célula individual pensar na vida, mas tem televisão, tem as suas coisas. A célula disciplinar tem mais restrições.

Se as prisões estão sobrelotadas, como há espaço para os separar?

No caso da Carregueira estamos a falar de uma cadeia que foi planeada para 500 reclusos e já vai nos 800. O que era uma cela para 4 passou a ser uma cela para 5, 6 ou 8.

Isso é uma camarata.

É como se fosse uma cidade que está a ficar sobrepovoada. Você não tem uma enfermaria maior, não tem um pátio maior, não tem um refeitório maior, não tem nada maior. Mas tem mais reclusos. Menos guardas e mais reclusos. E muitas vezes, se tiver um desacato numa cela de 8, não tem 8 guardas para lá ir – porque temos de estar sempre em número igual ou superior. Temos uma última segurança, que é um indivíduo num gradão, que pode ver os outros guardas todos a serem massacrados, mas ele é o último reduto, não pode abrir o gradão e deixar que os reclusos saiam.

Portanto, as condições têm-se degradado, imagino…

Para toda a gente. Celas que não têm manutenção, porque quem faz as manutenções são os próprios reclusos.

Varrem o chão, limpam as paredes…?

A limpeza da cela são eles que fazem. Mas estou a falar da manutenção, um chuveiro que se avaria, as pinturas… depois eles abrem buracos para esconderem porcarias, fica lá o buraco. Pequenas coisas: o candeeiro, a janela, uma infiltração. Quem faz estas reparações são os reclusos. Antigamente ainda havia um construtor, um pedreiro, um canalizador. Estes jovens que entram hoje em dia vêm menos habilitados.

A tendência é para os reclusos serem mais novos?

Não. Temos vários tipos de reclusos na minha prisão. Sem qualquer tipo de partidarismo ou de racismo, neste momento notamos que muitos dos novos reclusos são indianos, do Bangladeche e Paquistão.

Hindustânicos?

Muitos deles acusados em violações e abusos sexuais. Também temos muitos velhotes por violência doméstica e abusadores que abusam dos netos e de menores dependentes. E muitos violadores, muitos reclusos por assaltos, homicídios… Hoje em dia por qualquer coisa o pessoal puxa de uma arma. E muitas burlas. Desde burlas de milhões e milhões até à pequena burla do telemóvel.

Esses dos milhões não vão para uma prisão especial para crimes de colarinho branco?

Na Carregueira conseguimos misturar tudo. Separamos por alas e por pisos. A Carregueira é uma cadeia cujos reclusos dão poucos problemas a nível de agressividade para com os guardas. É muito raro, a não ser esses que têm surtos. O Linhó é para traficantes. Imagine uma cadeia quase só de traficantes…

Há alguma espécie de hierarquia dentro da prisão?

Claro que sim.

Como é que isso funciona? Imagine que eu acabo de chegar. Com quem tenho de falar?

Em cada piso, em cada ala, há sempre os líderes. Há de sempre haver um, ou dois, ou três que controlam aquilo.

Como é que eles obtêm esse controlo?

Pela força. São indivíduos que cá fora já eram dominantes. Eu chego ao pé de si e rapidamente vou saber quem você é. As redes sociais permitem isso. Cá fora, quando a sua família vem fazer a visita, a minha família vai abordá-lo. ‘Tu vais começar a trazer X para o meu filho, ou para o meu irmão. Ou então o teu irmão, ou o teu filho, começa a sofrer’. Isso sempre houve e vai haver porque eles no medo dificilmente se chibam. Então há indivíduos a serem extorquidos. Isto é a selva, há sempre os leões. Depois uns têm o negócio da droga, outros têm o negócio da chicha, que é uma bebida artesanal, outros têm o negócio dos telemóveis, outros têm um negócio de burlas cá fora. Eles conseguem arranjar mil e uma coisas.

Ou seja, mantêm contacto com o exterior.

Agora têm telefone na cela, podem ligar à hora que quiserem.

E essas chamadas não são monitorizadas?

Não. Eles não perdem direito à privacidade. Se você quiser falar com a sua namorada, eu não vou ter que saber o que diz. E, se quiserem, falam por códigos. Depois há outros órgãos a quem cabe fazer o seguimento. Temos lá indivíduos que quando nós dizíamos ‘Vamos apanhar-lhe o telemóvel’, nos respondiam: ‘Não, deixa-o ter o telemóvel’. Porque as informações estavam a ser monitorizadas.

Então eu chego à prisão e o que acontece a seguir?

Chega à prisão e fica alguns dias a respirar numa zona chamada de admissão, porque é um choque muito grande. É entrevistado pelo diretor ou pelo comissário, vai-lhe ser atribuído alguém para fazer o seu seguimento. Depois, dependendo do seu perfil, você é colocado na ala A ou B. Há uma população que é mais calma e outra que é mais fechada, mais complicada. Mas quando vão ao pátio acabam por misturar-se todos uns com os outros, e uns vão extorquir os outros. Depois há de se integrar, ou não…

Faz um amigo…

Depois há aquele que lhe quer bater e se você não se vira acaba por ser um saco de porrada, ou então vira-se e os outros pensam: ‘Com este vou ter que ir com mais calma’.

Conquista o respeito.

Ou então você é um indivíduo que chega lá e pergunta: ‘Pessoal, quem é que manda aqui? Sou Fulano, venho do bairro tal. A partir de agora, tudo o que seja droga é comigo’. ‘Vais ter que me dar uma comissão’. Já faz parte da turma. Os que lá estavam a mandar não são burros, percebem que ele lhes traz uma mais-valia. Se você não tiver nada para dar em troca, os gajos só lhe vão tirar. Há indivíduos que nasceram para ser vítimas e há outros que…

Há os predadores e as presas.

Mas mesmo os que são predadores cá fora chegam ali e há outros piores que eles. E o que está mais em baixo é o pedófilo. Você tem violadores a massacrarem pedófilos. No caso da Carregueira, como a especialidade são os crimes sexuais, os pedófilos são uns 50% ou mais. E normalmente é o crime que eles mais escondem. Têm vergonha. Mas é como tudo. Tantos dias juntos a conviver… E quando chega um novo, aquele fica esquecido. E é pedófilo, mas até é um gajo porreiro. Aliás, há ali indivíduos extremamente cultos e afáveis.

Pedófilos?

Tive um indivíduo, engenheiro, que nunca teve uma relação com miúdo nenhum. Tinha namorada, tudo. Consumia, pagava pedofilia. Nunca violou, nunca abusou, mas via. E ele dizia-me: ‘Eu não quero voltar a fazer isto, mas preciso de ferramentas para me ajudar’. É completamente marado. O violador de Telheiras é um indivíduo extremamente educado. E você diz: ‘Este gajo abusou sexualmente de 30 e tal mulheres’. É um indivíduo de formação superior, super-educado. Se estou alguns dias fora, ele diz logo: ‘Já não o via há muito tempo. Quer uma bolachinha?’. Há indivíduos com quem convivemos há anos e eles nunca passaram por si sem dar-lhe um bom dia ou boa tarde. Tenho colegas meus muito mais mal-educados.

Todas essas coisas proibidas – telemóveis, drogas, etc. – como é que entram na prisão?

Normalmente pela visita. As drogas não apitam. Temos um controlo, mas a visita não vai ser desnudada nem apalpada.

E não há cães farejadores?

Temos uns seis cães para os 50 e tal EPs. Esqueça, é impossível… E os cães são falíveis. Aquela nova droga do papelinho que eles fumam é uma folha de papel impregnada com um líquido. Você não nota, não cheira…

Então entra através das visitas?

Muito pelas visitas. Algumas coisas, às vezes, pelos abastecimentos. E infelizmente pelos guardas.

Com o salário que ganham, são mais vulneráveis a subornos?

Pois. Mas a honra não tem preço. Para mim o pior guarda que existe é o corrupto. Você pode ser gordo, magro, frouxo, pode ser baldas, pode ser tudo, mas o corrupto é um bandido que usa uma farda. Foram apanhados alguns a meter telemóveis, álcool e outras coisas. E depois os serviços prisionais dão-lhes serviços melhorados. Como este indivíduo é corrupto, não faz zona prisional. Só faz torres e serviços desse tipo, para não ter contacto com os reclusos. Como a instituição não tem, desculpe a expressão, tomates para o castigar, mandam-nos de uma prisão para a outra. E depois vêm parar à nossa.

E além dos guardas?

Há sempre os civis, as mulheres da cozinha, os indivíduos que vão levar os géneros alimentares para as cozinhas… Entram com as viaturas para descarregar, e no meio das batatas ou das couves pode ir um telemóvel. Eles já sabem, vão à procura. As senhoras das cozinhas, normalmente, levam as drogas. São dos bairros onde vivem os reclusos, e como não são revistadas, é fácil trazer no meio das cuecas ou em algum lado, e tiram lá dentro, em sítios que não tenham câmaras. Não há como controlarmos. Mas olhe, já apanhei tablets na zona prisional. E telemóveis daqueles que se dobram, um telemovelzorro de 1.500, 1.700 euros. Outra coisa que eles também fazem com os guardas são as apostas. Havia um guarda que punha 3.500 euros de Placard por semana para um recluso. O recluso era viciado em jogo, o guarda alimentava-lhe este vício e os prémios eram a dividir. Depois os reclusos ficam revoltados porque veem um guarda prisional a ser mais bandido que eles. Isto existe. E poderia acabar com os inibidores de sinal. Muitos violadores e condenados por violência doméstica continuam a telefonar às vítimas e a ameaçar as pessoas cá fora. Há muito indivíduo que tem telemóvel para continuar a ver pornografia na cadeia. E se eles tivessem inibidores de sinal isso já não acontecia. Além das novas modalidades dos drones. Você com um drone consegue fazer quase um Uber. As celas têm umas grades com esta largura [exemplifica]. Se você consegue pôr ali o drone, o gajo tira [a ‘encomenda’] e o drone vai embora.

Em rusgas e buscas quais são as coisas mais estranhas que já apanhou?

O que mais se apanha é mesmo isso: telemóveis, droga, espetos…

Espetos?

Armas artesanais que eles usam para se defender ou para ameaçar. E bebida alcoólica artesanal. E depois as pens, os carregadores, os intensificadores de sinal de Wi-Fi para terem net ali dentro.

E dinheiro?

Agora não há dinheiro em zona prisional. Nem me lembro da última vez que apanhei. Lá dentro funciona muito por trocas. ‘Queres usar o meu telemóvel, tens que me dar x onças de tabaco’. Ou a família do outro transfere o dinheiro para a minha conta lá fora. E depois têm um cartão, as famílias carregam o cartão e eles podem usar na cantina para comprarem o que quiserem. Café, tabaco, coca-cola, águas, salsichas, tudo o que quiserem.

O que é que as famílias normalmente mais levam?

Uma vez por semana trocam a roupa suja por roupa lavada. Podem trazer jornais e revistas. E podem trazer um quilo de comida por semana.

Qualquer tipo de comida?

A comida tem de cumprir uma série de regras. Os bolos têm que ser fatiados. Os frutos têm que ser secos e à vista. Não pode haver carne temperada ou cozinhada com molhos. Porque os molhos podem trazer álcool, etc. Há uma série de regras. As famílias também já sabem isso.

E um cozido à portuguesa?

Isso não podem.

Como é a comida da cantina?

Têm direito a quatro refeições por dia. Pequeno-almoço, almoço, jantar e um reforço.

E a comida é tão má como a gente acha que é?

Não, não, não.

Nos hospitais às vezes é intragável.

Vou-lhe dizer: é melhor a comida nas prisões do que nos hospitais. Acho que isto é triste, mas é o que é.

Li uma vez uma entrevista ao dono de um restaurante muito conhecido em que ele dizia que tinha levado muitos bifes do lombo a prisões.

Duvido muito… Para um guarda conseguir levar até um recluso um tipo de refeição dessas tinha que furar uma série de regras de segurança. Mas, se me perguntar, a coisa que vi mais estranha na Carregueira foi um indivíduo a comer um casco de sapateira. Na passagem de ano, um indivíduo das burlas de automóveis. A mulher dele morava no Belas Clube de Campo. Descia a rua. Agora, há histórias e histórias. Esse dono do restaurante diz que fez. Fez como? Duvido muito. Também pode ser uma gabarolice. É muito difícil passar os vários níveis. Mas já tivemos de tudo. Já tivemos mulheres a engravidar nos parlatórios, já tivemos uma advogada a ter relações com o recluso no parlatório…

Eles não têm direito a algum tempo de privacidade com as companheiras?

A partir de certa altura podem ter uma visita íntima por mês, desde que certifiquem que é namorada, companheira durante algum tempo. Na Carregueira temos quartos para isso. Só que depois há violadores que conhecem alguém online e elas começam a visitá-los. Não sabem o crime que ele cometeu e vão visitar um violador do piorio. Com doenças, com tudo e mais alguma coisa. Há muita mulher que se presta a esse tipo de situação.

Viu o filme Carandiru, que se passa numa prisão brasileira? Há lá uma cena em que um dos reclusos durante a noite despeja uma panela de água a ferver em cima de outro.

Agora já não tanto, mas isso era uma das formas que eles usavam [para ajustes de contas]… água a ferver com lixívia lá dentro. ‘Vamos fazer as pazes’. Chego ao pé de si e mando-lhe água a ferver com lixívia para os olhos, e com um espeto furo-o todo. Há ajustes de contas do arco da velha. Gajos que metem os outros nos degraus e lhes partem as pernas. ‘Nunca mais na vida vais andar como deve ser’… Não deve haver nenhum dia em que não haja uma situação de violência numa prisão portuguesa. Mas mesmo reclusos muito maus chegam a um ponto em que começam a ver as precárias, começam a ver a hipótese de sair, e também acalmam, a não ser que sejam completamente psicóticos.

Também acontece?

Acontece muito. Há indivíduos que a vida deles vai ser estar preso, sair, fazer mal a alguém, voltar a estar preso, sair, voltar a fazer mal a alguém… Vão passar 60 anos presos, só que entretanto há 3 vítimas, pelo menos.

Nunca deviam sair, é isso?

Aí já não falo, são coisas para quem tem influência na opinião pública. Está lá um indivíduo que violou duas raparigas estrangeiras, matou-as, nunca apareceram os corpos.

Está lá detido?

Está lá. Saiu e violou a filha à frente do neto. Saiu. Estava no hospital de Portalegre, na ala psiquiátrica, violou a paciente que estava ao lado. No meio disto fez 4 vítimas. E acredito que ainda vá sair outra vez.

Há reclusos sem recuperação possível?

Há muitos. Chegam lá e nós: ‘Está aqui outra vez?’. ‘Tive uma recaída’. E para eles uma recaída é violar alguém. Pode ser a sua esposa, a sua filha, a sua mãe, a sua irmã, a sua amiga, pode ser qualquer pessoa.

Resolvia-se com castração química?

Não sei. Desculpe mas isso era entrarmos nas bandeiras deste ou daquele, e eu não entro.

Que bens pessoais é que os presos têm, se é que os podem ter?

Podem ter uma televisão na cela, uma playstation, uma cafeteira, um rádio. Podem ter até cinco adornos – uma aliança, um relógio, uma pulseira… Depois podem ter 50 peças de roupa num armário. Agora não há armários para todos, muitos metem as roupas debaixo da cama. Só podem ter cinco pares de sapatos. Isto são os bens pessoais.

Não andam de uniforme, portanto.

Quando a Carregueira abriu tinham todos fardas. O Estado quis fazer uma coisa bonita mas depois não conseguiu manter.

Ao início falou de uma situação de canibalismo?

Isso é uma situação esporádica, um recluso que era canibal e meteram-no na cela com outro recluso. Um dia de manhã os meus colegas abrem a porta e o gajo está a comer o outro. Há outro caso muito conhecido de um indivíduo que se barrava a ele e às paredes de merda. Temos um meio que é seguro, o taser. Quem leva com o taser não se aleija e quem o usa controla o indivíduo sem envolvimento físico. Proibiram o taser porque houve uma situação que foi filmada com esse indivíduo, o ‘Animal’. O guarda, que é extremamente profissional, um guarda exemplar, é que é culpado… Disseram que o recluso não estava a oferecer resistência. Era um indivíduo que já tinha batido em toda a gente. Proíbem o taser. E o guarda quase condenado, coitadinho do bandido.

Há muitos presos que passam os dias a treinar o físico?

Claro que sim. A vida deles é comer, treinar e dormir.

E os outros? Como é que ocupam o tempo?

Treinam nos pátios, jogam futebol. Montam a rede de ténis e jogam ténis. Montam a rede de vólei e jogam vólei. Depende do que lhes apetece. Alguns EPs têm ginásio e musculação. Treinos de artes marciais estão proibidos. Depois têm direito à religião. Trinta mil religiões, são todas tratadas por igual. Mais funções para os guardas…

E as prisões são um centro de recrutamento para o crime organizado?

Não. Aquela não. Acredito que quando você vai preso vai tentar encostar-se a um grupo. Se for um indivíduo que trafica droga cá fora, lá dentro vai tentar manter o negócio. O negócio da droga é tanto ou mais rentável dentro das prisões do que cá fora. Quem conseguir fazer essa ponte e levar a droga de fora para dentro e traficá-la lá dentro vai fazer disso um negócio.

Portanto, eles continuam a praticar o crime?

Claro que sim. Muitos deles estão presos, mas continuam a dominar os grupos todos cá fora.

Ninguém os substitui?

Há indivíduos extremamente poderosos. Quando vão presos, os que estão cá fora são-lhes fiéis. A cabeça do polvo vai para dentro da prisão, mas os tentáculos vêm para fora. E quem está cá fora pode ser alguém da confiança ou alguém que tem medo. Se vejo que você está a começar a dominar a situação, mando um gajo que me deva qualquer coisa tratar disso. Basta fazer um telefonema para uma pessoa de confiança. Quero que faças isto, isto e isto. Naqueles 5 minutos que eles têm direito ao telefone, ligam para essas pessoas e dão-lhes as ordens.

Há presos que exibem sinais exteriores de riqueza? Um cordão de ouro…

Pode usar um cordão de ouro.

Já me falou do telemóvel.

Você se quiser pode usar um relógio Patek Philippe. Nunca vi, mas Rolex sim. Ou um telemóvel de 1.700 euros. Ou uns ténis de 200 euros para correr no pátio. Roupa Gucci e roupa Armani para a visita. Há indivíduos lá que são mesmo ricos, é a roupa deles do dia a dia. Se calhar até tiveram que escolher a pior roupa para levar, mas é tudo de marca.

Também há momentos de lazer e de prazer?

Os reclusos perdem o direito à liberdade mas continuam a ser exatamente os mesmos que são cá fora. O homem é um animal de hábitos. Depois se habituar àquilo, há alegria, animação… Quando estão bem, falam todos muita bem uns com os outros, cumprimentam-se quando saem das celas como se fossem vizinhos, fazem festas… é um espetáculo. Não é um mundo sempre em guerra, pelo contrário. E cá em Portugal o controlo das prisões ainda é dos guardas, não é dos bandidos.

Há reclusos muito religiosos? Parece uma coisa contraditória, cometer crimes e ser religioso.

Veja os casos da pedofilia na Igreja. Quer ir mais longe?

Mas os padres nunca vão parar à prisão.

Temos agora um padre estrangeiro que fez não sei quantas violações e foi apanhado. Mas as profissões mais difíceis de encontrar nas prisões são os padres e os juízes. Há tudo menos juízes. E das raças ou etnias são os chineses. Há pouco tempo vi o primeiro chinês preso em Portugal. O único chinês preso. Já vi mais transsexuais.

‘Tivemos uma avaria na autoestrada com quatro reclusos altamente perigosos’

Há falta de meios humanos nas prisões?
Tivemos agora um recrutamento, abrimos vaga para 225 pessoas. Não nos apareceram 225 candidatos, sequer. Antigamente eram aos milhares. Chegaram ao fim das provas 55 candidatos. Para ter uma noção, reúnem condições de saída [por reforma] cerca de 700 guardas. Já temos cerca de 2 mil guardas em falta, e neste momento podemos perder 700, para entrarem 55. Nem 10% conseguimos substituir.

Qual a razão para haver tão poucos candidatos?

Esta é a única força que não tem uma carreira, os nossos comissários são indivíduos que entraram para os serviços com a 4.ª classe, depois foram subindo, tiraram o 12.º ano ou uma licenciatura nas Novas Oportunidades, e chegaram a comissários. Nos últimos 25 anos, não houve um concurso para chefes. Temos indivíduos com 25 anos de serviço que nunca passaram de guardas. Os miúdos olham para isto e dizem: ‘900 euros de base para ir para guarda prisional? Qualquer Mercadona paga mais que isso’.

É por isso que temos assistido a greves dos guardas prisionais?

O dinheiro é um incentivo. Mas não me interessa ganhar mais e ter que fazer um trabalho de dois ou três. Quero ser reconhecido monetariamente, mas acima de tudo quero ter qualidade de vida e quero sentir-me seguro, dentro da insegurança que é a nossa função. Vou dar outro exemplo. As nossas viaturas mais recentes têm 25 anos. Você chega a abrir uma porta para tirar o recluso e a porta cai. Tivemos uma avaria numa autoestrada com quatro reclusos altamente perigosos. Sem ar-condicionado, 40 graus e eles a assarem lá dentro. ‘Sô guarda, abra-nos um bocadinho a porta. Vamos morrer aqui dentro’. E você chama quem?

É uma cena de apanhados.

Acontece todos os dias. Recebemos um subsídio de fardamento, compramos a nossa farda e o equipamento. Mas não podemos comprar viatura. Nós vamos dentro de viaturas que já chumbaram nas inspeções. E depois dão a indicação: ‘Vocês têm que ir à inspeção àquele sítio’. O meu colega foi a outro sítio, a viatura chumbou. O meu colega levou com um processo: ‘Não te disse para ires àquele sítio?’. Isto acontece.

É uma questão de segurança, portanto.

Os serviços prisionais, se continuarem assim, não têm futuro nenhum. É normal um guarda estar sozinho com 70, 80, 100 reclusos. E dizem: ‘Não há pessoal, queres o quê? Tens que ficar sozinho’. Isto é como dizer a um PSP para entrar a pé sozinho na Cova da Moura. Com sorte sai do outro lado. Imagine um desacato entre 50 reclusos. O guarda vai-se meter lá no meio? Na fuga de Vale de Judeus, estava um guarda a controlar o pátio, com cento e tal reclusos. Os gajos fogem, os guardas é que têm culpa? Se o guarda se metesse havia logo dois ou três que lhe diziam: ‘Chiiiuuuu. Onde é que tu vais?’. Para não dar o alerta, metiam-no a dormir, faziam dele o que queriam. Fugiram por culpa do sistema, porque não se investiu em segurança. O guarda ia fazer o quê? ‘Óóóóó! Não fujas’. Por amor de Deus. Agora condenam sete. Os guardas que estavam de serviço é que tiveram culpa da fuga? Não podem fazer nada. Mas tem que haver culpados. Nunca pode ser quem desativou as torres, nunca pode ser quem decidiu que não há concursos para guardas, nunca pode ser quem decidiu que a carreira fica estagnada.

O guarda prisional tem de ser uma pessoa um bocado dura?

Temos indivíduos fisicamente mais magros que você. Não é por aí. Acho que tem mais a ver com a atitude, com a sua capacidade de se afirmar como homem. A única forma de você se dar com todos por igual, não é pela força, é pelo respeito. Dar umas chapadas num ‘carocho’ [toxicodependente] é fácil. Agora, num de dois metros com 130 quilos já nem toda a gente consegue. Já tivemos indivíduos da máfia russa. Um gajo que era ‘só’ o campeão olímpico russo de judo. 150 quilos. A cabeça dele fazia três da minha.

Ninguém o controla…

Nem se conseguia algemar atrás das costas. Tinha que se pôr uma algema numa mão, outra algema na outra mão e depois prender as algemas uma à outra. A única forma de você se dar com toda a gente é pelo respeito. E lembrar-se que representa uma instituição. Se o recluso não o respeitar a si, vai ter que respeitar dois ou três. E, se não respeitar os dois ou três, a instituição vai arranjar forma de ir lá, seja o GISP, seja o que for. E ele vai ter que acatar. Claro que, se você entrar por ali ‘seu monte de merda, esterco, pedófilo…’

Há quem fale assim com os reclusos?

Antigamente havia. Hoje em dia o guarda é muito mais respeitoso, muito mais formado e o recluso acata muito mais isso. É pesado? É. Você trabalha todos os dias com aqueles indivíduos que a sociedade, por alguma razão, rejeitou e não quer cá fora. Em oitocentos, aquelas pessoas super tranquilas de que eu lhe falava são uns oitenta. Os outros setecentos e vinte têm problemas. Por isso este trabalho é muito mais complexo do que abrir e fechar portas. Assistimos a coisas que eu nunca pensei que alguém fosse capaz de fazer. Um indivíduo que violava a filha no banco de trás com a mãe a ver. E vai a tribunal para obrigar a mãe a levar a filha à prisão. E você diz: ‘Que tipo de animal é este?’.

Os guardas nunca agridem reclusos?

Muito dificilmente. Há câmaras em todo lado. Os reclusos queixam-se de tudo e mais alguma coisa. E depois temos a APAR [Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso], que protege o recluso, e não temos ninguém que proteja o guarda. O recluso queixa-se do guarda e está lá toda a gente para castigar, para pressionar a diretora, o guarda queixa-se de agressão e quando chega a tribunal o juiz diz: ‘Mas faz parte das suas funções o risco de ser agredido’. E é. Faz parte levar no focinho.

Os guardas são alvo da ameaça pelos reclusos?

Nunca fui pessoalmente ofendido. Ameaçado de morte, sim. Há colegas meus, vão com a filha de cinco anos pela mão, no Colombo, e de repente…

São reconhecidos.

Aparece o gangue. Aconteceu no Colombo e no Ikea. Um colega meu a levantar dinheiro no multibanco, vê um carro a abrandar. ‘Bum!’ Não levaram nada. Uma mocadazorra na cabeça. Você não pensa que vai para uma prisão e que o vão tratar sempre por senhor.