O texto não tem a linguagem assertiva de Francisco, nem precisava. É evidente a sintonia. Leão XIV agarrou em notas do antecessor e dedicou a primeira exortação – «Dilexi te» («Eu amei-te») – ao ‘grito’ dos pobres, às formas e causas estruturais da pobreza. O Papa nascido em Chicago insiste que não é «razoável organizar a economia exigindo sacrifícios ao povo, para atingir objetivos que interessam aos poderosos», até porque, «para os pobres restam apenas promessas de ‘gotas’». Se o pensamento social cristão releva o papel político dos estados na defesa do ‘bem comum’ e do princípio da subsidiariedade, Leão XIV posiciona a exclamação de Francisco: «É necessário continuar a denunciar a ditadura de uma economia que mata», a desigualdade, a sacralizada «autonomia absoluta dos mercados», a «especulação financeira», a «falsa visão de meritocracia».
A Igreja foi desafiada por Francisco a ser um «hospital de campanha», em ação, e não a mordomia de um hotel. É legítimo, por isso, questionar também uma certa Igreja de sumptuosidade. Neste documento, o Papa Prevost aperta a ferida. «Muitos pensam que podem deixar de dar atenção aos pobres», mas a expressão bíblica «pobres sempre os tereis» não está no «horizonte da beneficência», a pobreza não é uma inevitabilidade. Uma certa «ortodoxia», admite o Papa, é acusada de «passividade ou cumplicidade» face a «situações Intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações». Essa ortodoxia» opta «por uma pastoral das elites», com «critérios superficiais» para defender que «é melhor cuidar dos ricos» para que, «através deles, seja possível alcançar soluções mais eficazes». Na sequência, o pontífice apela ao envolvimento dos cristãos nos movimentos de trabalhadores, na luta contra a discriminação, e sublinha que «seria inimaginável», à luz da Doutrina Social da Igreja, que, nas atuais «circunstâncias sociais, laborais, económicas e culturais», os cristãos não se envolvessem.
Lembrava ainda Francisco que, estando ao serviço do «bem comum», a política «é a forma mais elevada de caridade». Podemos retomar o conceito de «esperança», que, com o Papa Bergoglio, ganhou uma dimensão transversal. Não faltam construções filosóficas ou até mitológicas, da Caixa de Pandora, em que a «esperança» é a última a sair depois de todos os males terem já feito o seu caminho, à expectativa cristã de uma redenção na vida eterna. Se Bento XVI sublinhou a «esperança» como certeza da fé cristã, Francisco focou a dimensão relacional e humana. E é aqui que a «esperança» se expande. «Basta um só homem, uma só mulher para que haja esperança» e «depois, há um outro ‘tu’ e ainda mais um ‘tu’ e, então, tornamo-nos ‘nós’», escreveu Francisco na autobiografia Esperança, e «quando há um ‘nós’, começa uma revolução». Se somos em interdependência, a essência da «esperança» está também na corresponsabilidade, dando alento e contrariando desânimos.
Pouco antes de morrer, na Quaresma de 2025, o Papa argentino questionava: a «esperança» ajuda «a ler os acontecimentos da história» e «impele a um compromisso com a justiça, a fraternidade, o cuidado da casa comum, garantindo que ninguém seja deixado para trás?».
A «esperança» implica o indivíduo e a comunidade, da resposta mais próxima à responsabilidade social e política, assegurando a capacitação de vidas concretas. Não é uma opção. E se é uma exigência de fé, é também uma condição inerente à cidadania.