Insólito, deveras interessante, bem humorado, de costas voltadas para os territórios da academia e do enfado, graficamente irrepreensível, e com a morte a espreitar-nos da badana, numa investida petulante que a um tempo nos gela, nos intimida e nos diverte. Assim é «Portugal de Morte a Sul – um guia de últimas viagens», o livro de estreia de Rafaela Ferraz, investigadora independente licenciada em Criminologia e mestre em Medicina Legal.
Misto de roteiro, ensaio, catálogo de imagens verbais, o volume, onde não pousa gralha (apenas ave de mau agoiro), começa a tecer a sua trama logo na portada, onde somos recebidos por um negríssimo corvo empoleirado numa sorridente caveira – tudo em fundo azul celeste. Lembramo-nos de José Rodrigues Miguéis e sorrimos-lhe com meia cara, para evitar implicâncias, animosidades, desejo de acerto de contas. Ainda não nos recompusemos, já Hieronymus Boch está a juntar-se. Uma visita às traseiras confirma e alarga as primeiras impressões: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos dispõem-se a conviver em regime de boa vizinhança.
Aberta a porta ao tema da morte de um ângulo, por cá, ainda muito pouco explorado, a autora estende-nos a mão – afeita à escrita compósita, segura, fortemente alusiva – para que a acompanhemos numa viagem por cemitérios e igrejas, santuários e museus, locais públicos e semi-públicos, aproximando-nos assim dos que partem.
Lido este seu guia de últimas viagens, presumo que os cemitérios sejam para si uma espécie de paragem obrigatória. Quantos já visitou?
Já perdi a conta, não perco uma oportunidade. Sempre que visito uma cidade nova, em Portugal ou no estrangeiro, tento sempre perceber se há algum de valor histórico ou cultural que não conheça e que possa visitar. E nos últimos anos, sempre que ando pelo nosso Portugal profundo [risos] – posso usar a expressão porque sou das Beiras – , visito mesmo os mais pequenos; muitos têm um único jazigo, pequenas sepulturas. São sempre uma janela muito interessante para as dinâmicas daquele lugar: quem eram as famílias daquele lugar, quais os apelidos que vemos representados ali, que tipo de monumentos existem, qual o tipo de pedra: granito, mármore, lioz, calcário… Há sempre características únicas que fazem com que todos eles sejam interessantes de visitar, mesmo os mais pequeninos.
Apoiando-se nesse espaço, o seu livro vem contrariar a ideia, por vezes muito difundida, de que a morte é um nivelador social. Há nele um lance comovente, a envolver uma passagem do escritor Fialho de Almeida, que deixa muito clara a ideia de desequilíbrio e de desigualdade.
É uma pequena passagem, mas todo o texto é fascinante. A tese de Fialho de Almeida, que ali se demora pelo cemitério dos Prazeres, é a de que o cemitério é a cidade em miniatura, os bairros do cemitério são os bairros da cidade: temos os jazigos, que são as mansões, as campas rasas que são a habitação de classe média, média-baixa e ainda temos a vala comum… E é curioso pensar que ele escreve isto em finais do séc. XIX. Portanto, não é uma ideia nova, já Ricardo Jorge escrevia sobre isto. A ideia de que o cemitério replica as desigualdades da cidade não é feito, é feitio. E se recuarmos no tempo, já o adro da igreja fazia o mesmo: quanto mais posses, maior proximidade do altar-mor. Existem até igrejas cujos altares laterais são patrocinados por famílias. A ideia de uma sepultura individual é uma ideia moderna. Antes do século XIX, o local onde somos enterrados é bem mais importante do que termos uma sepultura só para nós.
A ideia de que o cemitério é um espaço desigual é um contraponto bem interessante a alguns lugares-comuns muito circulados: «o que interessa a vida se vamos todos parar ao mesmo local» ou «na morte somos todos iguais».
É absolutamente mentira, espacialmente, mas também sob o ponto de vista da linha do tempo, porque há nomes que se perpetuam. Quem tiver um jazigo, uma sepultura perpétua pode perpetuar não só o seu nome mas também a sua reputação, a forma como se quer apresentar no futuro. É uma decisão que a pessoa pode tomar e gravar literalmente em pedra. Enquanto que uma pessoa sepultada na vala comum, prática que em Lisboa dura até 1941, não tem qualquer poder sobre o que será a sua história. Quem está numa campa rasa, situa-se algures, no intermédio. Talvez consiga permanecer cinco, dez anos, dependendo, mas chegará a um ponto em que aquele espaço será renovado, aquele monumento será destruído. E este nome, esta memória é eliminada do espaço público.
A ocupação do cemitério é, em boa verdade, a ocupação do espaço público. É uma coisa que não nos ocorre de imediato…
Sim, estamos habituados a pensar nestas questões no contexto dos jardins, das praças, quem é que dá nome às ruas, às praças. Então, olhemos para o cemitério também. Quem é que tem o nome gravado para a eternidade.
Donde lhe vem este interesse, este apego, pela temática da morte?
A minha formação académica inicia-se na Criminologia. Depois, fiz mestrado em Medicina Legal. E não estou a exercer em nenhuma das áreas. Diria que é o meu desenvolvimento intelectual e, na verdade, gosto das coisas desta forma. A licenciatura em Criminologia foi extraordinária para formar o meu pensamento; no fundo, veio materializar algumas das coisas que já me interessavam, a ideia de pensar o que são as margens, de pensar o que são as diferenças entre uma pessoa “normal” e uma pessoa “anormal”, o que é uma pessoa normativa e uma pessoa desviante. Na Medicina Legal, começamos a discutir as outras margens: o que é estar vivo, o que é estar morto. Mesmo na Medicina, a definição do que é estar morto é mais cinzenta do que pensamos. Se tivesse de criar aqui um ponto em comum entre todos estes interesses, diria que é isso: onde estão estas linhas, estas margens. Por vezes, tendemos a pensar nas coisas de uma maneira muito mais compartimentalizada do que elas realmente são. Um cemitério, por exemplo, é um espaço de mortos mas também é um espaço para os vivos. As linhas não são tão firmes quanto isso.
Presumo que um mestrado em Medicina Legal não se faz sem autópsia. Saiu-se bem na primeira a que assistiu?
Foi emocionalmente muito complicada, esse evento. Estava ansiosíssima, não sabia como iria reagir, se iria ficar perturbada pela visão, ou pelo som, ou pelo cheiro porque, no fundo, todos os nossos sentidos estão envolvidos naquela experiência. E é um ser humano que está ali à nossa frente. E que nós vemos descaracterizado, sem roupa, sem marcadores de identidade. Lembro-me de ter a percepção de que, à medida que a autópsia progride, a pessoa é cada vez menos pessoa porque estamos a ‘desmontar’, a dissecar. E depois ‘remonta-se’ a pessoa para que ela possa seguir para o rito funerário. Mas não foi tão difícil quanto estava à espera. Mas também estava focadíssima em mim mesma: não cair para o lado, tentar não enjoar demasiado. Foi um teste à minha tolerância. Depois assisti a outras que já não foram tão complexas, nesse sentido. Já sabia que tinha a capacidade de assistir a uma, na primeira não tinha a certeza.
A visão ocupa habitualmente um lugar forte na hierarquia dos sentidos. Foi esse o sentido mais convocado?
Aquilo de que me lembro mais é o olfacto, não pela razão que estará a imaginar. Recomendaram-nos que colocássemos vicks debaixo do nariz, dentro da máscara. Portanto, em todo o contexto só consigo cheirar mentol, mais nada. E durante muito tempo tive uma associação fortíssima ao cheiro do mentol, o que é terrível porque adoro rebuçados de mentol [risos]. Lembro-me também – e sem querer tornar a coisa muito gráfica – do cheiro do sangue, que é ferroso. E a audição, em que normalmente não pensamos. As ferramentas produzem sons específicos quando são pousadas numa mesa metálica. E tudo isto se desenvolve numa eficiência quase mecânica. A forma rotineira como tudo se processa é muito impressionante.
Jorge de Sena, que curiosamente nasceu em dia de finados, dizia que a morte é aquela de que nos livramos no enterro dos outros, pondo a tónica no ‘eu’, o que não era nele uma coisa rara. Que morte tememos mais, a nossa ou a dos outros? A morte não é sempre a morte do outro?
É isso que eu digo no meu contexto pessoal e nem sempre é bem recebido. A maioria de nós tem até mais medo da morte dos outros do que da nossa, porque essa é aquela que nós vamos sentir, que vamos experienciar. E vamos ter de lidar com a perda de outra pessoa e com o mundo em que essa pessoa já não está presente. Isto tem muito mais peso do que eu hoje estar vivo e amanhã não. À partida não vou saber, não terei consciência disso.
Nas páginas deste seu livro debruça-se justamente sobre a morte dos outros, uns anónimos e outros com nome, com curiosíssimas histórias…
Não tinha pensado nisso dessa forma, mas acaba por ser um bom resumo. Ao longo deste percurso, onde podemos reflectir um pouco sobre a nossa mortalidade e a nossa finitude, damos por nós a saltitar entre a morte dos outros e a ver o que podemos efectivamente aprender com elas. Os temas do livro podem ser muito pesados: a morte, o cadáver, o descanso eterno de uns e o túmulo profanado de outros; isto é de uma enormidade difícil de digerir, mas acredito que podemos fazer uma aproximação a estas ideias através destas histórias mais pequenas e mais humanas. Se algumas até forem um bocadinho cómicas, melhor, mais facilmente conseguimos abrir a porta de acesso aos temas que nos interessa discutir.
Aprende-se muito, por exemplo, com a secção do livro dedicada a capelas de ossos. A porta abre-se, escancara-se e diríamos que o panorama é assustador…
Eu às vezes não me apercebo o quão dentro da bolha já estou. Acredito que, para fora, a ideia possa ser muito perturbadora. Na verdade, é uma prática muito católica esta ideia de construir capelas dos ossos com base nos ossos que tivemos de exumar do adro da igreja. Se estamos a enterrar ossos à volta das nossas igrejas durante gerações e gerações, eventualmente vamos ficar sem espaço.
Uma questão de logística, portanto?
É importante para mim, ao longo destes capítulos, pensar na morte como uma coisa muito prática. Os ossos tinham de ser geridos, de alguma maneira. Temos um acumular de material ósseo que tem de ser colocado em algum lado. No fundo, sim, é um problema logístico com uma solução, para a sensibilidade de hoje, bizarra. Mas é uma prática que, por muito excêntrica que seja, encaixou muito bem naquela que era a cultura e a mentalidade da época. Hoje, olhamo-la mais de soslaio. É uma ideia que tem um alcance, até geograficamente, bastante alargado: há capelas dos ossos por toda a Europa, de quase catedrais a cubiculozinhos. Optei por começar o capítulo com as capelas dos ossos de Faro, porque, de todas as que já visitei, essa [forrada a ossos humanos] é verdadeiramente bonita; e é leve, ensolarada, com um claustro que também é um bocadinho jardim. É uma coisa pitoresca que nos faz desligar um pouco da realidade dos materiais que compõem o seu interior. Já a capela dos ossos de Évora é mais pesada, é solene; mais escura e mais moralizadora. A de Rio maior… Temos, aliás, algumas passagens dos nossos companheiros ingleses que a descrevem como sendo horripilante.
A verdade é que há quem se disponha a tirar umas selfies nestes espaços. O turismo negro anda a ganhar terreno?
Às vezes, gosto de interpretar esse gesto como, quer intencionalmente quer não, estas pessoas estão a relacionar-se com a capela tal como a capela pretende que elas se relacionem. Estão a criar um paralelismo entre o seu rosto e o crânio que está na parede. Portanto e por muito irreflectido que o gesto seja, a pessoa que tira uma selfie está a reconhecer uma linha, um ponto em comum. Logo aí, há já alguma reflexão sobre aquele que era o propósito da capela dos ossos: fazer-nos pensar sobre a nossa finitude. Por outro lado, muitos autores alegam que a foto serve para fazer prova de que estivemos num sítio que é tabu.
A morte é um tabu?
Tenho alguma reticência em usar a palavra tabu. Por vezes, usamo-la mas não estamos muito bem a definir o que queremos dizer. E depois olhamos para o nosso país, ainda muito apegado a práticas católicas, religiosas e espirituais… Se perguntarmos à minha avó (à que me sobra), ela não dirá que a morte é um tabu. Para ela, é normalíssimo ir ao cemitério, à missa do sétimo dia. Nada para ela é tabu na interpretação deste tema. A minha geração provavelmente já terá uma relação diferente e um pouco mais distante. A morte é misteriosa, acima de tudo. Sabemos que virá para todos nós, mas não sabemos quando, como, em que contexto, em que circunstâncias é que o nosso fim virá, e o depois… Mas interessarmo-nos muito por esse mistério, sobretudo se formos pessoas supersticiosas, pode ser arriscado [risos], posso estar aqui a atrair alguma coisa que não quero ou não pretendo. Esse lado da repulsa, do receio, da superstição está muito presente.
Mas, para lá desse interesse, presumo que haja um interesse pela morte mais concreto, envolvendo aspectos talvez mais materiais.
Sim, temos imensas pessoas que se interessam por séries como o CSI, que se interessam pelas ciências forenses, que gostam de perceber o que acontece ao corpo depois da morte. Nas visitas aos cemitérios é muito comum, independentemente do tema da visita (podemos estar a visitar monumentos), as pessoas terem dúvidas práticas: «Mas como é que o caixão entra ali dentro?», «Como é que o caixão é manuseado?», «Então e tiram as pegas ao caixão?», «Como é que fecham?». Temos muita curiosidade sobre estas coisas práticas. E sempre que dou por mim num contexto em que existe abertura para falar sobre esses temas, as pessoas não têm receio nenhum em colocar as questões. Parece é que na normalidade do nosso quotidiano não sabemos se as fronteiras do dia-a-dia nos permitem falar sobre isto. Se o livro tiver um objectivo, talvez seja o de criar espaço para podermos falar sobre estas coisas.
A lente, por vezes irónica, e que lhe permite alcançar algum distanciamento, auxilia?
Sim, em alguns casos. Há alguns autores que têm, nos últimos anos, escrito sobre a morte de forma um pouco mais leve. Mary Roach, por exemplo, uma grande comunicadora de ciência, que tem dois livros sobre a morte que são muito divertidos de ler. Um desses livros é sobre as funções que o cadáver pode cumprir na sociedade: doação de cadáveres, utilização de cadáveres para testar a segurança dos automóveis. No fundo, o ângulo que a autora adopta ao longo do livro é este: as ‘profissões’ que o corpo humano pode ter depois da morte. É um ângulo cómico, mas o livro é muito rigoroso na investigação que desenvolve, nos factos que apresenta.
E o outro livro dessa autora?
Investiga a existência da alma, falando com especialistas, com investigadores, sempre com um tom muito leve, descontraído, que sinto que é importante para conseguirmos chegar a alguns leitores. Muitos não estão disponíveis para ler sobre a morte. Não têm os recursos emocionais e mentais para ler sobre um tema tão pesado quanto este. No meu livro em particular, à medida que nos aproximamos do final, o peso é cada vez maior. Se abordasse os temas com aquela sobriedade neutral, quase académica… No fundo, sinto que posso fazer aqui um bocadinho de batota, servindo-me de um registo que não é o académico; isso dá-me aqui alguma flexibilidade a nível de tom.
Teria dificuldade em envolver-se mais emocionalmente com o tema?
Não, mas lá está, sinto que isso impediria muitos de acederem ao livro. Torna-se uma coisa muito séria, muito mórbida, tétrica. Espero atrair um ou outro leitor que, de outra forma, talvez não pegasse no livro. É possível falar de temas pesados de forma leve, e é um pouco isso que tento fazer neste livro, especialmente no início, em que o tom é leve, é irónico. O final do livro é mais sóbrio, mas enquanto chegamos e não chegamos lá, passamos por uma série de histórias que, reduzidas aos seus elementos básicos, conseguem ser bastante cómicas.
Quer dar-nos alguns exemplos?
Falamos de uma mulher que é enterrada duas vezes, por exemplo; falamos de um cemitério chamado Prado do Repouso, onde durante muito tempo houve animais a pastar; falamos de um homem que decide construir o seu jazigo num determinado ponto do cemitério porque quer ficar perto do coração embalsamado do seu rei favorito. Lemos aquele texto de Fialho de Almeida, escrito em finais do século XIX, que compara um jazigo a uma salgadeira. Falamos de capelas dos ossos, que usam ossos humanos como decoração de interiores e até se fazem acompanhar de um versozinho ameaçador: nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos. Falamos de pessoas como Santa Maria Adelaide, que são desenterradas no seu cemitério local e, porque até estão com bom aspeto, são elevadas a santas. Falamos daquele período bizarro em que o Vaticano decide desenterrar uma série de esqueletos de antigos romanos, vesti-los a rigor, e distribuí-los pelo mundo cristão como se fossem santos. Quando não sabem os seus nomes, até os batizam com nomes novos, como Santo Anónimo ou Santo Incógnito. Até no final do livro, quando já estamos em território mais pesado, encontramos situações absurdas: como na execução de Francisco Mattos Lobo, por exemplo, em que morre o condenado à forca e morre o padre que o acompanha.
Têm-lhe chegado reacções a este desfile um nadinha negro [risos], na linha do turismo insólito?
Tenho recebido muito feedback sobre o tom descontraído, humorístico, talvez até um pouco irónico do livro, e é curioso para mim sentir, talvez, que os leitores acham o tom surpreendente considerando o tema do livro. Já eu gosto de pensar que faço parte de uma linhagem de escritoras que têm falado da morte de uma forma muito descontraída: Jessica Mitford com The American Way of Death (1963), Mary Roach com Stiff: The Curious Lives of Human Cadavers (2003), Caitlin Doughty com Will My Cat Eat My Eyeballs? (2019), entre muitas outras. Fala-se muito dos limites do humor, e sem me querer embrenhar muito nessa discussão, não me parece nada que a morte esteja para lá dessa fronteira. Até num velório se arranja motivo para rir à gargalhada, havendo vontade.
É verdade que o título é já todo um programa…
Por vezes, falamos do marketing de forma pouco elogiosa, mas marketing também é isto: também é escrever de uma determinada forma, criar uma certa ligação ou não, gerar alguma emoção em quem nos lê. No fundo, tudo isto se junta num todo que nos traz até aqui. Acho que as peças eram todas necessárias para conseguir escrever este livro.
A sua escrita aproxima-se muito da escrita literária, com notável economia narrativa, gestão de efeitos… De onde lhe vem isto?
A minha primeira grande paixão é a ficção, enquanto leitora e enquanto escritora. Tenho alguns textos de ficção curta que viram a luz do dia e que foram publicados em revistas de fantasia e ficção científica, britânicas e americanas. Tenho alguma dificuldade em conseguir suster uma fantasia, digamos assim, durante um romance inteiro. Ainda não me atirei nesse sentido, mas espero poder fazê-lo um dia. Diria que desenvolvo a minha prática da escrita na ficção, que depende muito da capacidade de conseguir pintar um contexto para que o leitor nos acompanhe. Que é um bocadinho o que tento fazer em alguns capítulos ou secções do livro, tentar criar aqui um universo em que o leitor entende todas as peças que estão no tabuleiro, para me poder acompanhar sem eu o estar a interromper parágrafo a parágrafo, a dar-lhe novas informações.
O tom humorístico abate-se, com força particular, sobre os santos incorruptos. É a atitude de quem não teme afrontar a santidade?
É uma boa pergunta, e confesso que agora estou a ver essa secção com outros olhos. Não tentei que esse capítulo fosse necessariamente mais irónico ou mais humorístico do que aqueles que o rodeiam. Ainda assim, em retrospetiva, e olhando até para o que digo na conclusão do livro, «gosto da companhia da santa incorrupta, mas o santo das catacumbas deixa-me inquieta», é bem possível que o meu tom ao descrever as aventuras dos nossos santos incorruptos reflita o à-vontade que sinto quando estou na presença deles. Quando olhamos para figuras como Santa Maria Adelaide de Arcozelo, uma mulher que morre em finais do século XIX e é exumada e elevada a santa do povo em inícios do século XX, estamos a olhar para uma mulher de carne e osso, igual a nós, igual a mim, que por uma série de peripécias acaba com reputação de santa.
É bizarro.
Sim, há aqui um quê de bizarro, nesta ideia de que uma pessoa pode ser desenterrada, promovida a santa, e continuar a desempenhar um papel na sua comunidade mesmo depois de morta. Os fiéis pedem favores a Santa Maria Adelaide, deixam-lhe ofertas, Santa Maria Adelaide lá facilita um milagre ou outro, e nisto forma-se um sistema até bastante funcional de trocas entre vivos e mortos. Santa Maria Adelaide consegue, mesmo depois de morta, estar presente nas vidas de muita gente. Até eu tenho uma caneca comemorativa com uma ilustração da Santa no seu caixão! É uma figura que me parece muito próxima, muito acessível, e não falo sobre ela com descontração e humor por querer questionar a sua santidade, mas por reconhecer, talvez, que é uma pessoa como eu. Por muito santa que seja, por muito atribulado que tenha sido o seu percurso até à santidade, não deixa de ser humana.
É o lado da humanidade, portanto, que a faz fixar-se nestas figuras?
Não só. Sempre tive muito interesse na questão dos santos incorruptos. A grande tese do livro é a de que, em todos os contextos, quando vemos um corpo morto ele foi colocado lá para nós vermos, seja num museu, numa capela dos ossos, seja na capela de Santa Maria Adelaide. Esta mulher é encontrada durante um acto administrativo absolutamente normal num cemitério. Abre-se o caixão, o corpo está incorrupto (o significado exacto da expressão é discutível, quem já viu reconhecerá que ela não está intocada pela morte; pelo contrário, tem um aspecto bastante morto). Os populares dão conta de que isto aconteceu, e imediatamente gera-se um burburinho na localidade: descobriram um corpo intacto, portanto deve ser santo. O gesto de exumar o corpo e colocá-lo em exposição é uma decisão rápida, tomada por um grupo de membros daquela localidade em seu próprio proveito. Expõem o corpo para depois poderem relacionar-se com ele enquanto santo, o que é muito diferente de eu, no século XX, fazer uma expedição ao Egipto e trazer de lá um cadáver mumificado. Entre todos os santos incorruptos, Maria Adelaide é o caso mais extraordinário. Tem um culto já com alguns anos, com devotos pelo país fora e suponho que lá fora também. Quem visitar o museu de santa Maria Adelaide vê ali uma infinidade de dádivas, ex-votos…
É todo um merchandising impressionante…
A caneca, por exemplo, que eu utilizo em casa no dia-a-dia [risos]; é a minha caneca de secretária. Achei engraçado e comprei numa loja de velharias muito longe de Arcozelo. Sempre que olho para a caneca, com uma ilustração muito simplificada, fico sempre a reflectir sobre isto: como é que esta mulher que vive uma vida, à partida tão simples, e que poderia ter ficado esquecida para a história, mesmo porque as mulheres têm registo curto na história e ela não fez nada que a imortalizasse.
Actualmente – e a pandemia veio talvez sublinhá-lo – a morte é apressadamente despedida. Convívio difícil? Pouco domínio da arte de perder? Dissimulada repulsa?
Se olharmos para o cemitério, essa mentalidade começa a ver-se logo no século XIX. Até ao século XIX, temos o espaço de enterro dentro da localidade, normalmente no adro da igreja (e a igreja é o centro da comunidade) e com os cemitérios públicos, esse espaço é deslocado para a periferia da localidade. Quando pensamos nos grandes cemitérios de Lisboa e do Porto, eles estão integrados dentro da cidade, neste momento, mas quando foram construídos não estavam. A cidade é que expandiu até aos portões dos cemitérios entretanto. Temos aqui um primeiro afastamento que é motivado por uma razão higienista, uma preocupação de saúde pública; tratava-se de afastar o cadáver, associado a uma série de doenças e perigos que, entretanto, descobrimos que não são tão gravosos quanto isso (não nos passa assim tantas doenças, tirando ébola e pouco mais). Mas também há uma razão mais estética. O Romantismo do século XIX quer muito idealizar a morte, apresentá-la, não como algo disforme, que decompõe o corpo e que deturpa a nossa imagem do falecido, mas antes queremos vê-lo numa imagem de repouso eterno. Estas duas ideias juntam-se no cemitério público do século XIX e, na minha interpretação, diria que continuam connosco. Desejamos cada vez mais que o cadáver tenha um aspecto aceitável para nós, que não tenha sinais visíveis de degradação. A imagem da morte já é demais para nós.