Vital Moreira: “O Presidente da República não pode ser um elemento desestabilizador”

No livro Que Presidente da República para Portugal? o constitucionalista traça o perfil desejado para Chefe de Estado e diz que Cavaco Silva foi aquele que menos se afastou desses critérios. Já Marcelo ‘foi além do que devia e podia’.

Lançou o livro ‘Que Presidente da República para Portugal?’, em que aborda o que um Presidente deve ou não deve fazer…

O Presidente não governa, não legisla, não manda no legislador, não manda no Governo. Nos termos da Constituição, é uma espécie de árbitro polícia para fazer cumprir as regras – e o árbitro não joga, não manda no jogo. Além disso, o Presidente da República é o representante da coletividade política nacional. Tem uma função simbólica, uma função de identificação e, porventura, é essa a primeira ideia que os portugueses fazem do Presidente, que é representar simbolicamente, cerimonialmente, a República fora e dentro do país. Por outro lado, segundo a Constituição, jura cumprir e fazer cumprir a Constituição, tendo poder de apresentar casos ao Tribunal Constitucional. O nosso Presidente pode fazer muito mais face a muitos países, em que só têm as funções de representação. Entre nós tem o poder de veto legislativo, tem o poder de dissolução parlamentar. Mas só tem os poderes previstos na Constituição, não outros. No entanto, não podem ser usados arbitrariamente, por capricho. Ora, o atual Presidente da República, em várias situações, esqueceu a regra de prudência de conta, peso e medida. Dissolveu a Assembleia desnecessariamente, fez vetos excessivos. Nestes 10 anos e, quase tudo no segundo mandato, tivemos três dissoluções parlamentares, quatro eleições e cinco governos. Isto não tinha precedente. Não pode ser. O Presidente é um garante, não é um governante. O Presidente é uma magistratura de influência, não uma magistratura de incidência. O Presidente faz respeitar as regras, portanto, ele próprio não pode ser o primeiro a não respeitar as regras. O Presidente é um moderador que promove acordos, consensos, e não um fator perturbador da vida política.

O caso mais mediático dessa intervenção foi a dissolução do Governo maioritário de António Costa?

Houve vários. No livro cito dezenas de casos em que o Presidente foi além do que devia e podia. Por exemplo, chamar ministros a Belém. Os ministros não respondem perante o Presidente da República, respondem perante o primeiro-ministro, perante a Assembleia da República e perante a opinião pública. Defender a demissão de um ministro, como fez com João Galamba, não tem cabimento nenhum. Também como a promulgação de leis, dizendo claramente que são inconstitucionais, mas ainda assim promulgou, como aconteceu com as leis que aumentavam a despesa pública previstas no Orçamento. Há outros casos menos notórios, como participar numa iniciativa do PSD quando deve ser independente partidariamente, ou em cerimónias religiosas enquanto Presidente, quando há separação entre Estado e Igreja. A título particular e como cidadão pode ir às cerimónias religiosas que quiser, agora como o Presidente não deve. A maior parte dos cidadãos não sabe exatamente para que serve um Presidente da República e creio que estes dois mandatos do atual Presidente não ajudaram a clarificar. Pelo contrário, só ajudaram a tornar ainda mais impreciso o cargo e a missão do Presidente da República.

Foi na presidência de Marcelo Rebelo de Sousa que se assistiu a essa maior interferência ou já era comum no passado?

Não tenho dúvida nenhuma que estes dois mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa significaram uma profunda mudança intervencionista de ativismo presidencial sem precedente. Nenhum dos outros presidentes, talvez tirando Eanes no primeiro mandato, mas aí foi antes da revisão constitucional de 82. Desde 82 não houve nenhum Presidente que tivesse ido tão longe no seu ativismo, no seu intervencionismo e em pisar o risco dos limites dos poderes presidenciais.

António Costa no prefácio do livro diz que um Presidente da República tem como objetivo prevenir crises e mobilizar consensos políticos e sociais. Não assistimos a isso, especialmente neste segundo mandato?

António Costa fala disso no geral, não faz nenhum juízo sobre o atual Presidente. O que diz é que a tarefa do Presidente deve ser a de contribuir para encontrar soluções para as situações de crise e não para as agravar.

Dos candidatos que se apresentam para as eleições presidenciais qual é que poderá cumprir melhor este papel?

No livro apresento um conjunto de requisitos que desejaria que os candidatos respondessem. É o perfil que entendo que deve ter o Presidente da República. Alguns dos textos foram publicados antes de julho e, nessa altura, só Marques Mendes e Gouveia e Melo tinham avançado com posições e declarações sobre o que pensavam ser o seu exercício presidencial se fossem eleitos. Critiquei ambos, em duas ou três circunstâncias. Mas depois de ter publicado essas críticas, nenhum deles repetiu essas posições, ou pelo menos, não repetiu no mesmo grau.

Em relação a António José Seguro, o apoio do PS peca por tardio?

Não, nas eleições presidenciais não há candidatos partidários e nas últimas eleições presidenciais o PS não apoiou ninguém. A ideia de que os candidatos devem sair de partidos é errada e a ideia de que os partidos têm de apoiar candidatos também é errada. A Constituição é clara: nas eleições presidenciais não são os partidos que vão a votos, são os candidatos. Até defendi num desses textos que o PS podia talvez fazer o que já tinha feito nas últimas eleições, não apoiar ninguém. A candidatura de José Seguro é de José Seguro, não é do PS, como a de Marques Mendes é de Marques Mendes, não é do PSD. E penso que ambos não vão ter todos os votos do seu partido e ambos vão ter votos oriundos de outras áreas, como aliás sempre aconteceu.

Faria mais sentido a esquerda e a direita unirem-se em torno de um candidato para não correrem o risco de haver tantos votos dispersos?

Numa democracia liberal como a nossa, a candidatura é livre. Os candidatos que entendem que devem ir podem fazê-lo. A única censura que faço é que alguns candidatos só vão para defender as cores do seu partido, como é o caso das candidaturas do PCP, do Bloco, da Iniciativa Liberal, etc. Claramente as possibilidades de serem eleitos são zero, querem ir para defender as posições do seu partido. No entanto, essa liberdade existe e para haver eleição é preciso ter mais de metade dos votos. O que me parece é que, neste momento, ninguém vai ter essa percentagem na primeira volta e as pessoas vão ter a oportunidade, na segunda volta, de ter apenas dois candidatos. Não sei se há um de esquerda e outro de direita, porque existe o Almirante Gouveia e Melo que não tem vida partidária passada. Muitos desses candidatos que concorrem só para defender o partido vão ficar de fora. Se calhar a segunda volta vai ser interessante para saber quais são as alternativas.

Há muitos anos que não temos uma segunda volta…

Foi em 1986 com Freitas do Amaral e Mário Soares.

Nessa altura, Álvaro Cunhal pediu aos comunistas para taparem os olhos e votarem em Mário Soares…

Exatamente, porque o candidato do PCP ficou de fora. Aí só havia um candidato de direita, Freitas do Amaral, e um candidato de esquerda, Mário Soares. É certo que à direita, praticamente, só havia Freitas do Amaral, enquanto à esquerda havia inicialmente três ou quatro candidaturas: Mário Soares, Salgado Zenha, Maria de Lourdes Pintasilgo e o candidato do PCP, que já nem sequer me lembro de quem era. Na segunda volta, Álvaro Cunhal, perante um empate entre o candidato da direita claramente assumido e o candidato da esquerda, mesmo não sendo o seu, disse que o PCP não tinha outra hipótese se não votar no candidato de esquerda.

Agora quem acha que pode passar à segunda volta?

Não sei. Penso que, neste momento, nem há ainda sondagens fiáveis, mas como cidadão diria que dois irão sair deste quarteto: Gouveia e Melo, Marques Mendes, António José Seguro e André Ventura.

E como vê declarações como a de André André Ventura que diz querer assumir uma lógica de presidencialismo?

Isso é antecipadamente declarar que é pôr a Constituição no lixo. Não creio que tenha a mínima hipótese de ser eleito, mas, caso isso acontecesse, a primeira coisa que qualquer Presidente da República faz na tomada de posse é jurar cumprir a Constituição. Ora, com uma declaração dessas é dizer que não vai cumprir, porque claramente a Constituição não prevê presidencialismo nenhum. O presidencialismo é um regime político em que quem governa é o Presidente. Veja os Estados Unidos, veja o Brasil. A Constituição diz exatamente o contrário: quem governa é o Governo. Não creio que seja uma grande credencial para ser eleito.

No livro também aborda a hipótese de haver alterações à Constituição. Que alterações defende?

Um Presidente que não incorra nos excessos do atual, que tenha um perfil discreto, que não abuse nem do veto legislativo, nem do poder de dissolução e que não se torne comentador da vida política, como o atual Presidente de vez em quando parece ser e fazer, não é preciso mudar a Constituição. Basta interpretá-la e aplicá-la corretamente. O que penso é que face a esta tentação presidencialista a que assistimos nos últimos 10 anos seria conveniente pôr cautelas que neste momento não estão lá. As propostas que faço são para tornar mais rigoroso e menos discricionário o uso do poder de veto. Menos discricionário e mais preciso o uso do poder de dissolução.

Para dar uma maior estabilidade política e governamental?

Exato, a ideia é essa. O Presidente da República não pode, não deve ser um elemento desestabilizador, pelo contrário. Perante situações de crise deve tentar antecipá-las e mesmo não podendo antecipá-las deve tentar repará-las para não se verificar o que incorremos nestes dez anos: quatro eleições, três dissoluções, cinco governos. Esta é uma situação em que o país não pode incorrer. As eleições custam caro. São caras financeiramente e são caras para o sistema do país porque criam um problema de confiança com as empresas, com os consumidores, com os investidores. Incorrer em quatro eleições em dez anos, três delas resultantes de dissolução, não é uma situação que o país deve encarar favoravelmente.

Deve evitar a queda do Governo em caso de chumbo do Orçamento, como se verificou no ano passado?

Há uma magistratura de influência que é feita discretamente. Cito no meu livro que um dos presidentes que melhor usou o seu poder de influência, de forma discreta, reservada, frugal, foi Cavaco Silva. Foi um dos presidentes que menos se afastou do perfil que considero ser constitucional. Sabemos até porque publicou as suas memórias como foi ativa a sua missão de influência junto do Governo, da oposição e de instituições internacionais. Não precisou de comentar a vida política todos os dias, nem de abusar do poder político-administrativo, nem de abusar do poder da legislação parlamentar para ser um Presidente com um perfil reservado, e influente, usando o poder de influência que é secreto por natureza, invisível. É muito mais positivo ter um Presidente que atua eficazmente nos modos reservados, discretos, do que um Presidente que faz estardalhaço, mas que depois banaliza a sua capacidade de influência.

Marcelo Rebelo de Sousa terá ficado deslumbrado com as selfies e com a popularidade?

Não me quero pronunciar sobre as opções de estilo de Marcelo Rebelo de Sousa, há uma margem de opção pessoal sobre isso. O que penso é que o Presidente não compete com o primeiro-ministro ou com os líderes partidários. Não é estrela, porque não é ator político, é o árbitro, é o polícia, é aquele que está em segundo plano, cujo poder é forte, porque sanciona as infrações das regras. Usando uma metáfora do mundo animal, no sistema político, tal como num galinheiro, não pode haver dois senhores, só pode haver um. No nosso sistema, o Presidente da República tem um poder neutro, um poder que está acima do jogo partidário. Não pode participar neles nos mesmos termos em que participam os líderes partidários ou o primeiro-ministro. A ideia da banalização da atividade presidencial não é o melhor modo de encarar o estilo presidencial.