“Lembro-me dos dedos dela aqui nos olhos”. José Manuel Anes explica ao detalhe o ataque da filha

“Que Deus a perdoe, eu ainda tenho muitas dificuldades em perdoá-la”, diz José Manuel Anes, que garante não querer vigança, apenas que a filha seja tratada. Abordou ainda a polémica com João Soares.

Três semanas após ter sido esfaqueado pela própria filha, José Manuel Anes deu uma entrevista à CMTV onde relembrou os momentos de terror que viveu. O antigo presidente do Observatório de Segurança, habituado a analisar casos de criminalidade para o público português, passou de comentador a vítima e decidiu falar publicamente sobre o trauma.

As imagens que o perseguem são claras e dolorosas. Com a voz controlada mas o semblante marcado pelo trauma, repete uma frase que se tornou o símbolo do seu pesadelo: “Lembro-me dos dedos dela aqui nos olhos.”

A manhã que tudo mudou: porta aberta, vida em risco

José Manuel Anes não esperava que aquela manhã fosse diferente das outras. Aguardava a entrega de uma encomenda destinada à companheira quando ouviu bater à porta.

“Ao final da manhã, eu estava à espera de uma encomenda para a minha amiga. Estava em casa, batem à porta, achei que era a encomenda”, recordou.

O que se seguiu foi uma sucessão de violência que ainda hoje o assombra. Mal abriu a porta, foi derrubado. A filha atirou-se sobre ele com uma fúria que descreve como incontrolável, conta.

“Ela em cima de mim, pancada por todo o lado. E com um objeto cortou-me. Tanta pancada apanhei… na cabeça, na barriga. Por milagre não chegou aos intestinos, nos tendões, nos olhos. Eu lembro-me dos dedos dela aqui nos olhos. Dei-lhe uma dentada e ela tirou os dedos”.

A agressão foi acompanhada de ameaças repetidas: “vou-te matar, vou-te matar”. Naquele momento, José Manuel Anes estava convencido de que não sobreviveria. Descreve o episódio como algo saído de um filme de terror americano, uma realidade que nunca imaginou viver na própria pele.

Uma fuga e duas horas de sofrimento

O ataque terminou quase por acaso. A abertura de uma porta por um vizinho criou uma oportunidade de sobrevivência. José Manuel Anes só se lembrou de gritar “Isto é a polícia, vem para te prender”. Ana Anes fugiu, deixando o pai gravemente ferido no chão.

Durante “duas horas”, o criminalista permaneceu sozinho, a sangrar, incapaz de pedir ajuda. Só foi encontrado quando funcionários de um restaurante que frequentava diariamente estranharam a sua ausência e contactaram a sua companheira. “Ela encontrou aquela desgraça”, lembra.

O sentimento que prevalece é ambíguo: “Tenho pena dela, mas também tenho pena de mim. Foi por um triz que não fui desta para melhor.”

O móbil: uma herança e uma obsessão

Embora reconheça que a filha tem um historial de instabilidade psicológica, José Manuel Anes não tem dúvidas de que houve premeditação. O motivo, segundo afirma, é material: uma propriedade na Costa da Caparica herdada dos avós.

“Ela atacou-me, e quis matar-me por causa de uma casa que eu tenho na Costa [da Caparica] que herdei dos meus avós. E já lhe tinha dito que quando eu morresse a casa era para ela”.

Mas a filha queria o imóvel imediatamente. Alegava ter sido deserdada, acusação que o pai desmente. A ironia, para o criminalista, é trágica: “Ela é tão louca que não vê que matando-me não ia ter direito a nada…”.

Alertas não ouvidos, sinais ignorados

José Manuel Anes admite agora que os avisos existiram. Amigos próximos, incluindo colegas advogados, insistiram para que apresentasse queixa formal contra a filha. Ele nunca o fez. A razão era simples e dolorosa: “mas era a minha filha”.

Os sinais de perturbação mental eram evidentes há anos. O criminalista tinha bloqueado Ana nas redes sociais, farto das publicações que descrevia como delirantes e que envolviam alegadas ligações à Mossad e ao caso Camarate, tendo chegado a acusar o pai de ter fabricado a bomba que matou Sá Carneiro e Amaro da Costa.

No dia anterior ao ataque, a filha terá enviado uma mensagem ameaçadora. José Manuel Anes só soube dos detalhes depois. “Se eu tivesse visto tinha tido mais cuidado”.

A degradação mental, considera José Manuel Anes em retrospetiva, começou após o divórcio dos pais quando a filha tinha 16 anos. Chegou a ter acompanhamento psiquiátrico e a estabilizar com medicação, mas terá abandonado o tratamento. O pai sempre a viu de forma compassiva: “Sempre a vi como uma miúda coitadinha, muito nervosa, cheia de problemas. A bipolaridade é evidente”.

Perdoar? “Tenho muitas dificuldades”

Os ferimentos físicos estão a cicatrizar. O trauma psicológico, esse, permanece vivo.

“A cara dela em cima de mim a bater-me… enquanto eu me lembrar disso, vou ter dificuldades em perdoar. Que Deus a perdoe, eu ainda tenho muitas dificuldades em perdoá-la”.

José Manuel Anes garante que não irá esconder a verdade em tribunal: “Direi o que tenho a dizer”. Mas o seu desejo não passa por vingança, mas sim por tratamento médico. Quer que a filha seja acompanhada clinicamente, que deixe de ser um perigo para si própria e para os outros. “Tem que se tratar”.

João Soares: “Ultrapassou o limite”

O episódio teve também repercussões políticas quando João Soares, antigo ministro da Cultura e ex-presidente da Câmara de Lisboa, publicou nas redes sociais uma mensagem onde, apesar de inicialmente desejar melhoras a Anes, o criticou com dureza. Soares afirmou que o incidente demonstraria que Anes teria sido “um péssimo presidente” do Observatório de Segurança e acusou-o de ter um “percurso fantasioso” enquanto comentador na área. terminando com a polémica frase: “Desejo-lhe melhoras na saúde física, na mental já me é mais difícil”.

Anes, confrontado com essas declarações, na mesma entrevista afirmou que o ex-ministro “ultrapassou todos os limites”, sobretudo num momento em que ele próprio ainda recuperava de um ataque violento. Mostrou surpresa com o tom usado por Soares e considerou que a intervenção do antigo autarca não se justificava, classificando-a como “oportunista e despropositada”.

Segundo Anes, o motivo para o ataque verbal de Soares estaria relacionado com desavenças antigas, incluindo divergências profissionais e episódios passados em que ambos estiveram envolvidos publicamente. Anes sublinhou que nunca teve qualquer conflito pessoal com João Soares e que não compreende a “agressividade gratuita” das críticas, sobretudo numa altura que descreve como “um dos momentos mais difíceis” da sua vida.

Um caso que expõe fragilidades sistémicas

O testemunho de José Manuel Anes transcende o drama pessoal. Coloca em evidência falhas estruturais no acompanhamento de doentes mentais, na prevenção da violência doméstica e na proteção de famílias vulneráveis.

Que um especialista em criminologia, alguém habituado a identificar padrões de risco, tenha sido vítima de um ataque tão brutal dentro da própria casa demonstra que ninguém está imune. A doença mental não tratada, combinada com conflitos familiares profundos, cria situações-limite que atravessam todas as classes sociais.