Nuno Morais Sarmento: “O oceano Atlântico deve ser encarado como um desígnio nacional”

Para Nuno Morais Sarmento, Portugal pode encontrar no Oceano ‘um caminho para o seu  desenvolvimento’, mas ‘não pode ser um desígnio político ou partidário’. O antigo ministro acredita que, num ambiente de instabilidade, cabe à FLAD ‘construir pontes e reforçar redes de ligação entre Portugal e os Estados Unidos’.

Em 2024, Morais Sarmento, antigo ministro de Estado e da Presidência, foi nomeado por Luís Montenegro para presidir ao conselho de administração da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) que ao longo deste ano celebrou o seu 40.º aniversário. O ex-governante pretende abrir as portas da FLAD, contrariando a tendência que existia até assumir funções e não esconde que a sua ambição é estreitar pontes, fortalecer as comunidades luso-americanas e aproximar pessoas e instituições entre os dois lados do Atlântico.

A FLAD tem estado ao longo deste ano a comemorar os seus 40 anos. Que balanço faz, quais os principais desafios e oportunidades que identifica?

Fizemos iniciativas muito variadas, que começaram em Lisboa, no dia 20 de maio, data do aniversário com uma grande conferência sobre os oceanos e que contou com com um concerto, a partir de uma obra de um escritor norte-americano, Paul Auster, que escreveu três livros sobre Nova Iorque. As iniciativas terminaram no dia 11 de outubro, em Nova Iorque, nos Estados Unidos de América, com um conteúdo português que foi o regresso da Amália à Broadway. Amália já era, na altura, uma embaixadora reconhecida de Portugal no estrangeiro, mas foi em Nova Iorque que a voz de Amália se tornou universal. Isso aconteceu em Carnegie Hall, uma sala mítica com três mil lugares, com Raquel Tavares, Cristina Branco e Ricardo Ribeiro acompanhados pela Orquestra Sinfónica Portuguesa. Curiosamente Amália que em Portugal nunca cantou em inglês e nunca saiu do fado tradicional, nos Estados Unidos cantou fado em inglês. Porque refiro estas duas iniciativas entre todas? Em primeiro lugar, porque a primeira concretiza aquele que é um dos objetivos deste mandato, que é o de termos uma estratégia consistente no que diz respeito aos oceanos e de ser esse o fio condutor que pretendemos ter do ponto de vista da definição estratégica nestes quatro anos, quer no apoio a iniciativas que já existem, quer no desenvolvimento de iniciativas novas.

Porquê o oceano?

Em primeiro lugar, porque através do oceano chegamos a duas dimensões: Portugal é maior do que o seu território na língua e no mar. Na língua, vamos chegar lá através desta ideia do Oceano Atlântico. E o mar é ele próprio o Oceano Atlântico. E nesta relação direta estamos a falar das comunidades, muito em particular das comunidades lusodescendentes que estão nos Estados Unidos: 1,5 milhões, com as quais temos já uma permanente interação, mas pretendemos através desta relação direta e centrada no oceano aproximarmo-nos mais. Em segundo lugar, por causa dos Açores, que são o ponto intermédio entre Portugal e os Estados Unidos. Os Açores são uma parte importantíssima da história da relação entre Portugal e os Estados Unidos, a maioria da nossa imigração que deu origem às comunidades lusodescendentes que hoje lá se encontram partiu dos Açores. Há um período curto, por razões também conhecidas, em que houve uma imigração significativa da Madeira, no entanto, são os Açores que têm maior peso, também por causa da base das Lajes. Após a construção da base das Lajes e seu funcionamento, os Estados Unidos permitiram durante um período longo, uma década ou mais, que os açorianos pudessem emigrar à vontade, coisa que não existia nem para os portugueses em geral, nem para ninguém. Curiosamente, apesar da sua experiência com a pesca, os açorianos chegaram aos Estados Unidos e viraram as costas ao mar. Onde é que a nossa comunidade açoriana se vai enraizar? Na Califórnia, onde se dedicam à agricultura. É lá que encontramos hoje em dia, por exemplo, o rei da batata doce, que é o maior produtor e comercializador dos Estados Unidos e que é português. Também no Havai temos uma comunidade lusodescendente muito significativa. No Luxemburgo entre 15 a 20% da população é portuguesa ou de origem portuguesa e ficamos muito impressionados com isso, quando no Havai 15% da população é lusodescendente e nem sequer temos essa noção. Em terceiro lugar, do ponto de vista económico e estratégico, se o Oceano Atlântico que encontramos sob a nossa responsabilidade tem uma área que é 50 vezes o território continental, então devemos encontrar aí o nosso desígnio, em que a ligação entre os Estados Unidos e a Europa através do Atlântico voltou a ser evidente, desde logo por razões de segurança, de defesa da circulação de navios de guerra de países terceiros e evidentemente pelos cabos submarinos.

E a questão dos cabos submarinos tem ganho cada vez maior destaque…

E Portugal, por acaso do destino – não é por estratégia, infelizmente –, é um hub intercontinental, onde se ligam os cabos submarinos dos Estados Unidos, mas também da América do Sul e de África. E recuperando a importância dos Açores para os Estados Unidos, onde eles têm presença através da base das Lajes, talvez seja possível num futuro próximo interessarem-se por uma presença naval. Devemos ter uma estratégia nacional em que o oceano possa ser o tal desígnio, onde podemos encontrar um caminho para o desenvolvimento de Portugal, e através dessa estratégia encontrarmos o valor acrescido e diferenciador que nos pode permitir economicamente sair do exercício a que estamos habituados. É certo que isto vai muito além da FLAD, não pode ser um desígnio político ou partidário, tem de ser um desígnio nacional, pois pode estar ali o nosso futuro. A primeira conferência que fizemos foi para chamar a atenção para o início da afirmação desta estratégia. Encerrámos nos Estados Unidos e, estando a falar para as comunidades lusodescendentes, no entanto, não foi uma iniciativa menor. O evento realizou-se numa sala como não existe em Portugal, com três mil lugares que tínhamos de encher – e a Amália não será suficientemente conhecida para as novas gerações americanas para garantir a ocupação desse espaço –, sendo que as comunidades eram o nosso alvo. Nos Estados Unidos, o desafio nas comunidades lusodescendentes não é protegê-las contra a extradição por não estarem integradas, é o contrário: por estarem tão bem integradas, o risco é o das nas novas gerações, segundas e terceiras perderem a sua ligação com Portugal, desde logo pela língua. Daí a nossa aposta nas comunidades começar pela língua e por reativar os pontos que deixaram de existir. Por exemplo, no Havai o ensino da língua portuguesa deixou de existir. Sem o ensino da língua portuguesa não conseguimos ir lá. Apresentámos nos Estados Unidos um estudo que já tinha sido feito e que contou com a segunda edição nos cinco anos seguintes, que foi a caracterização das comunidades lusodescendentes e um dos dados evidentes é que, considerando o universo de 1,5 milhões de lusodescendentes, pelo menos, dois terços não falam e um terço fala a nossa língua. Ou reativamos isto ou não vale a pena fazer outras coisas, porque já percebemos que há um gap que se está a acentuar entre o número de lusodescendentes e os falantes de português. Outra aposta foi o lançamento de uma coleção de livros que editámos em par: um escritor norte-americano, um escritor português ou lusodescendente com o mesmo tema, com o mesmo número de páginas, com o mesmo tempo para escrever sobre economia, literatura, oceanos e diáspora.

Esta cooperação com os Estados Unidos pode ser mais ou menos estreita consoante quem está na administração norte-americana?

No limite, teoricamente, pode, como é evidente, mas a verdade é que tem sido feito um caminho que está muito para lá dos presidentes e que tem sido relativamente constante. Temos estado a falar de deixar de olhar o oceano Atlântico como o Atlântico Norte, mas temos pessoas na administração norte-americana que há 20 anos que andam a trabalhar isto, tal como nós. Há uma evolução que tem vindo a ser certinha para lá dos presidentes e no que diz respeito às comunidades elas não têm o risco evidente de serem alvo de políticas segregacionistas, até pelo contrário, são comunidades relativamente integradas.

Falou-se em cortes de financiamento para as universidades.

A educação talvez seja a área de intervenção mais forte, temos relação com 38 universidades norte-americanas, para as quais enviamos umas dezenas de bolseiros e estou a falar de pós-graduações, doutoramentos, de investigação. São umas dezenas de pessoas altamente qualificadas que todos os anos vão para os Estados Unidos, continuando uma ligação que existe há muitos anos. Não temos nota de qualquer alteração que se tenha verificado em nenhum dos muitos programas que temos e o principal nessa área, além dos bolseiros é o SiPN – Study in Portugal Network, um programa que foi lançado há 10 anos e que tem vindo a ser robustecido com a vinda para Portugal de estudantes pré-universitários por seis meses ou um ano. Já vieram uns milhares de estudantes norte-americanos e com isto estamos a falar de uns milhares de embaixadores de Portugal que conseguimos criar nos Estados Unidos, não tenho dúvida nenhuma. 90% dos estudantes que cá vêm ficam com uma ideia muito positiva e o que pretendo é que sejam criadas redes de alunos, quer de bolseiros, quer destes estudantes americanos que estiveram em Portugal. A experiência diz-nos que muitos destes estudantes que vieram para cá depois estão disponíveis para participar em iniciativas da FLAD ou para iniciativas que estão relacionadas com Portugal. É uma possibilidade, assim saibamos construir, até agora não foi feito. Quanto aos bolseiros, temos o Fulbright e o German Marshall Fund e, embora sejam para pós-graduados, admito que entre os dois um terço dos ministros do atual Governo e um terço do Governo anterior do PS tenham sido bolseiros. O mesmo acontece com investigadores e cientistas. Não tenho dúvida nenhuma de que não há mais nenhuma rede em Portugal que possa ser tão representativa e tão forte, nem de perto, nem de longe.

Outro dos destaques diz respeito ao prémio Rui Machete.

O prémio tem uma importância grande. É um prémio anual no valor de 100 mil euros que será atribuído a uma pessoa ou a uma organização no âmbito desta relação Portugal-Estados Unidos que se tenha destacado em áreas determinantes para o futuro de Portugal e na promoção das relações bilaterais entre Portugal e os Estados Unidos. A nomeação dos candidatos ao prémio e a escolha final do vencedor ficará a cargo de um júri composto por personalidades de renome, externas à FLAD, presidido por José Manuel Durão Barroso, que conta com nomes como Cristina Fonseca, Víctor Cruz, Maria João Avillez, Luís Amada, Mariana Van Zeller, entre outros. Outra iniciativa que iremos ter diz respeito a um memorial dos bolseiros da FLAD, são cerca de 10 mil, que vai contar com um artista de renome. Neste número está uma parte muito significativa daqueles que são a elite, a primeira linha, em termos de ciência, de pintura, de investigação e também em termos políticos.

Tem insistido na necessidade de reforçar as ligações dos dois lados do Atlântico. A aplicação de tarifas por parte da administração de Donald Trump pode dificultar a relação Portugal-Estados Unidos?

Não é essa a minha guerra, a minha é simplesmente aquela que, desde o princípio, foi a guerra da FLAD: criar e reforçar redes de ligação entre Portugal e Estados Unidos.

Mas as tarifas podem prejudicar alguns setores de atividade nacionais.

Veremos, porque também já percebemos que essa questão das tarifas tem evoluído de formas muito variadas e ainda não temos o fim dessa história, mas, de qualquer maneira, a minha guerra não é essa. É construir redes e quanto mais difícil ou exigente for o exercício mais temos de apostar nesta linha simples de construir e reforçar pontes. Por isso falei-lhe dos bolseiros, assim como das comunidades, mas também posso falar da rede que iniciámos através de uma iniciativa que foi a conferência Sister Cities, que nasce da constatação que Portugal tem 58 cidades portuguesas geminadas com cidades norte-americanas. Todas as outras geminações que temos, seja com cidades de língua francesa ou inglesa, se calhar, somadas, não dão 58, ou seja, é uma desproporção que tem a ver precisamente com o mapa das comunidades portuguesas. O movimento dos portugueses nos Estados Unidos é a razão dessas 58, em que mais de dois terços são provenientes dos Açores. O que fizemos? Pegámos em mais de 30 cidades portuguesas e no mesmo número de cidades americanas e juntámos fisicamente, respeitando um bocadinho a ideia de ver onde havia pontos de ligação, práticas comuns e exemplos a seguir, criando mais um ponte que não tem a ver com governos, nem com a economia. Estamos a ter uma consciência cada vez maior de que a capacidade de decisão, o poder de decisão está hoje mais nas mãos das autarquias do que estava há 20 anos. Não está no poder central. Isto é muito mais do que acordos e tratados com o presidente dos Estados Unidos. O que nos interessa são pontes, redes que existam para nos aproximarmos das comunidades e, para as reforçarmos, não há nada melhor do que ligarmos cidades, pois é aí que estão os lusodescendentes em posições de decisão. Aproximar, juntar e trabalhar neste nível é, porventura, mais eficiente do que trabalhar ao nível de Governo para aquilo que nos interessa que são as comunidades. Quando mudar o Presidente e vier outro, mais simpático ou menos simpático e se me perguntarem como é que se vive com o mais simpático ou menos simpático, a resposta será a mesma: trabalhar as cidades.

O foco serão sempre as comunidades.

Sim, e o movimento da administração norte-americana tem sido relativamente constante. Por exemplo, está tudo muito preocupado, e bem, com a saída dos Estados Unidos da primeira linha de defesa da Europa, mantendo-se numa segunda linha, e há a ideia que Trump chegou e disse: ‘Vamos fazer este movimento’. Não é verdade, o momento em que na Europa teve menos soldados norte-americanos foi com Obama, descemos de 100/150 mil para 20 mil. Hoje em dia temos o triplo do que tínhamos no tempo de Obama e o que é que isto quer dizer? Quer dizer que há um movimento que não tem nada a ver com o Trump e que nasceu bem atrás.

Há pouco falou da base das Lajes. Como vê as polémicas em torno da sua utilização por aviões dos Estados Unidos da América?

Estas polémicas, na maior parte dos casos, são ridículas. O que tem de haver é comunicação, não tem que haver autorização. Não é a sociedade portuguesa que está agora preocupada com a base, quem está a criticar é a esquerda caviar, não vi muitos líderes socialistas a questionarem isso. Uma parte que está preocupada que a base se vá embora são os açorianos, tirando isso temos a esquerda cocktail que gosta de criticar.

O que pretende para a FLAD?

Quero uma FLAD aberta, por contraposição àquilo que encontrei e que senti ostensivamente fechada. Dou três exemplos de como procuro fazer isto. A primeira, foi questionar por que a FLAD tinha a porta fechada, passou a estar aberta. Custou, demorou um mês e meio para que a porta se abrisse e uma pessoa saiu da FLAD por causa disso. Segundo exemplo, a FLAD não tinha espantosamente, ao fim de 40 anos, uma agenda. Não encontro fundação nenhuma que não tenha uma agenda, até as pequenas têm. Não tinha, mas passou a ter e esta é uma maneira de aproximar mais as pessoas porque não podiam saber com antecedência o que é que a FLAD fazia. Terceiro e último, abrir o edifício e a coleção de pintores à comunidade. Fazer um pouco o que se fez na Residência Oficial do primeiro-ministro. Um dia por mês, em articulação com a Fundação Vieira da Silva, vamos abrir as portas para que visitem as instalações e o seu conteúdo das instalações. Tenho procurado que a FLAD faça o caminho na direção de uma fundação mais aberta e mais próxima. Isto não é para quem cá está e era por isso que era tão pouco conhecida. Também não tem de ser conhecida pelo país inteiro, nem é um campeonato de notoriedade, a FLAD não é candidata à presidência, mas tem de ser mais divulgada, mais aberta.

Anunciou recentemente o apoio à candidatura de Marques Mendes às presidenciais de janeiro.

Vejo com tranquilidade a possível eleição do próximo Presidente da República porque não me parece que esteja no cardápio de nenhum deles a saída da NATO ou a saída na União Europeia. Aqueles que são os apontados possíveis concorrentes à segunda volta não vejo nenhum anti-americano.

Mas anunciou o apoio a um deles…

Individualmente, tenho o direito de votar em alguém como cada um de nós. Dei conta disso porque, apesar de tudo, tenho responsabilidades políticas e de forma constante ao longo dos últimos 30 anos, não renunciei à possibilidade de participar civicamente, mas o presidente da FLAD diz que não está nada preocupado tendo em conta os elementos disponíveis. E os elementos disponíveis dizem que não existe a possibilidade de eleição de um presidente anti-americano ou anti-EUA. A minha responsabilidade, enquanto presidente da FLAD é construir pontes e trabalhar com qualquer dos presidentes que seja eleito. Se fosse eleito algum presidente anti-americano poderia estar preocupado.