Os três ‘efes’…

Há 40 anos, em Abril, quando o Regime definhou no Carmo e a Revolução restituiu a liberdade, proclamava-se em vésperas do 1.º de Maio que era chegado o tempo de pôr de parte os três ‘efes’ que haviam dominado o Estado Novo: Fado, Fátima e Futebol. Por esta ou por outra ordem…

Em nome de tão iluminadas convicções, Amália foi suspeita das mais nefandas cumplicidades com o regime deposto, antes de ser reabilitada e chegar ao Panteão; Fátima passou um mau bocado, e a Igreja precisou de adaptar o discurso, embora contasse no seu activo com rebeldias e exílios, como o de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto; e o Futebol deixou de figurar em lugar de relevo nas primeiras páginas dos jornais desportivos, trocado por modalidades menores, que jamais haviam sonhado com essa promoção.

Quem viveu por dentro o PREC, em particular nas redacções dos jornais – caso do autor desta coluna -, pôde observar conversões súbitas de fé ideológica, apostolados doutrinários em plenários intermináveis, acusações mútuas de delito de opinião, medos e fragilidades com fartura.

A par deste estado de coisas, percebeu-se logo, com as Chaimites ainda a circular na rua, que o idealismo de Salgueiro Maia – é importante repeti-lo – estava a ser rapidamente subvertido pela única força verdadeiramente organizada, o Partido Comunista, com ramificações profundas entre os militares, e em sectores sensíveis da sociedade civil, jornalismo incluído.

O primeiro 1.º Maio pós-Estado Novo foi, ainda, uma festa genuína nas ruas, porque meio século de restrições à palavra e de perseguições políticas tinham cimentado todas as oposições, das moderadas democráticas às totalitárias radicais.

Mas enquanto uns sonhavam com a Europa sem fronteiras, usando o voto para decidir o futuro, não faltavam outros que afiavam a foice para cortar a seara da esperança renascida.

A União Soviética era apresentada como o 'sol da terra', os movimentos marxistas ganhavam terreno nas antigas colónias em África – com a prestimosa ajuda de militares de Abril -, e as portas das prisões abriam-se para novos detidos.

As redacções trepidavam de rumores sobre golpes e contra-golpes. E poucos eram os que resistiam à enxurrada esquerdizante, sobressaindo os recém-convertidos.

Até ao 25 de Novembro de 1975, o atordoamento revolucionário repetia o sufoco, e sobejavam os editoriais inflamados, defendendo já abertamente outra ditadura, de sinal contrário, distinguindo-se a direcção do DN, onde pontificava José Saramago.

São memórias breves de noites e dias longos. Com a democracia a funcionar, os três 'efes', todavia, regressaram em força.

O Fado, eleito património imaterial da humanidade pela Unesco, todos os dias acrescenta vozes, lançadas por um marketing agressivo.

Fátima modernizou-se como estuário de fé, apesar da crise acentuada de vocações para pastorear o rebanho.

E o Futebol ganhou um estatuto superlativo, movimentando milhões à volta de jogadores – os novos 'escravos de luxo' -, de treinadores e de dirigentes, preenchendo horas absurdas de emissão televisiva, e as primeiras páginas dos jornais.

Mudámos? Decerto. Mas os três 'efes' continuam imbatíveis. Somos assim.