Jogo de enganos

Nada teve de surpreendente a convergência de posições entre o Governo de Passos Coelho, a troika e personalidades europeias sobre a ‘saída limpa’ de Portugal do programa de resgate. No seu discurso festivo de domingo passado, o primeiro-ministro limitou-se a invocar, quase a papel químico, os argumentos utilizados pelo seu colega Enda Kenny para justificar…

De facto, já não restavam quaisquer dúvidas de que a saída não poderia ser outra, apesar das falsas aparências de livre escolha entre duas alternativas: a que acabou inevitavelmente por impor-se e uma opção ‘cautelar’ (que, no fundo, nunca existiu). 

A margem de manobra era, afinal, nenhuma. Apesar disso, a pretensa solução ‘cautelar’, considerada mais segura, reunira as preferências do Presidente da República, do governador do Banco de Portugal ou até, embora de forma mais difusa, do próprio primeiro-ministro ou da ministra das Finanças. Mas, no fim, tudo foi sublimado pelo triunfalismo da ‘saída limpa’ e Cavaco Silva, mau grado as suas reservas anteriores, não perdeu a oportunidade de chamar a si uma parte dos louros da vitória sobre aqueles que «ainda há menos de seis meses» previam a necessidade de um segundo resgate: «O que dizem agora?» – desafiou o Presidente no Facebook.  

Só que essa questão deixara de fazer sentido, na actual conjuntura europeia, não apenas por razões económicas e financeiras – com a descida das taxas de juro e os indícios de retoma, ainda que muito incipientes ou ilusórios, nos países periféricos e no centro da zona euro –, mas sobretudo por motivos marcadamente políticos. Em vésperas de eleições cruciais para o futuro da Europa, assombradas pelo espectro dos movimentos anti-europeus, era preciso simular a todo o custo o sucesso das políticas de austeridade como um caminho de sentido único para cumprir a ortodoxia orçamental. 

Evidentemente, esse sentido único – que reflecte o pensamento único e correspondente discurso único que prevalecem na Europa – não dispensa algumas nuances inevitáveis. 

Em Portugal, o Governo e o PSD invocam o 25 de Abril, enquanto o CDS saúda um novo 1640 com o fim do ‘protectorado’ humilhante e a recuperação da soberania. Em contrapartida, os nossos credores, apesar de nos apontarem como um exemplo admirável de disciplina e sacrifício, não deixam, por isso, de relembrar que o fim simbólico da troika não significa o fim da austeridade redentora. 

Obviamente, o Governo jura a pés juntos que não se afastará do caminho da virtude e se manterá imune a tentações futuras, mas ainda assim auto-ilude-se com as delícias de uma autonomia reencontrada. Já para os sucessores da troika, estaremos sob regime de liberdade estreitamente vigiada, não vá o diabo tecê-las…Pelo sim, pelo não, cá nos visitarão de seis em seis meses – e já não de três em três – para verem se nos portamos a preceito.

Um dos problemas deste jogo de enganos é que ele não serve apenas para enganar os eleitores mas acaba também por envolver no seu feitiço o próprio feiticeiro. À força de pretenderem subjugar a plateia, os actores enredam-se nas teias da ficção que representam até a confundirem com a realidade. Os efeitos especiais tendem a escapar ao domínio do mágico que os produz. 

Ora, isto não é apenas válido para quem nos governa e pretende reduzir ao mínimo possível o desgaste eleitoral, assegurando a sua sobrevivência política. É igualmente válido para quem, na Europa ou no FMI, insiste em proclamar a infalibilidade de uma doutrina de integrismo financeiro, protegendo-se no interior de um casulo de ilusões precárias.

Aliás, o que se joga agora na Europa é também um jogo de enganos e truques eleitorais, no qual se diluem as diferenças políticas e as escolhas entre elas. Um jogo que alimenta o caldo de cultura do eurocepticismo, dos populistas e da extrema-direita.

O que separa Durão Barroso, o trabalhista holandês Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo, ou o ministro das Finanças alemão Schäuble? Todos são fiéis agentes da unicidade ideológica, financeira e política vigente na Europa. E nem as diferenças entre os dois candidatos principais à futura presidência da Comissão de Bruxelas – o social-democrata alemão Schulz ou o conservador luxemburguês Juncker, ambos críticos, embora em tons diversos, de Durão Barroso – são suficientemente marcantes para estimularem uma verdadeira escolha eleitoral, numa Europa bloqueada pela asfixiante hegemonia germânica.

Tão asfixiante que nem Schulz – membro do SPD coligado com a CDU de Merkel – nem Juncker – proposto pela aliança conservadora de que o partido da chanceler alemã é a força dominante – estão em condições políticas, apesar das palavras e promessas, de garantir um mandato menos governamentalizado do que o que Barroso tristemente protagonizou.