Uma pequena luz

Experimentei a felicidade de ver um jovem amante de jazz mas desconfiado da chamada ‘música clássica’ converter-se entusiasticamente ao talento dos grandes compositores na penúltima edição dos ‘Dias da Música’ do Centro Cultural de Belém.

Na edição deste ano, sob o inspirador tema da ‘Mudança’, os jovens músicos estiveram em merecido destaque. Actuaram no CCB quase 500 alunos de escolas e conservatórios de todo o país, além de orquestras juvenis, e a presença dos jovens músicos foi marcante em todos os programas. 

Encontrámos assim, de repente, a imagem de um país onde a música, que carrega um longo historial de desprezo no ensino, começa finalmente a existir e a mostrar os seus valores. Uma nação forte em literatura, como Portugal reconhecidamente é desde há muitos séculos, não pode ser uma terra de surdos. Escrever exige um apurado sentido musical; que estas duas dimensões continuem tão arredadas nos programas escolares é um erro que prejudica gravemente não só a emergência de potenciais artistas mas sobretudo a criação de públicos para as artes.

Conhecimentos de música ajudam a apreciar Camões, Vieira, Vergílio Ferreira ou mesmo Agustina – que sempre alegou não gostar de música, decerto porque inventou um sistema de música barroca e vanguardista muito só dela, como é visível sempre que se lê em voz alta qualquer uma das suas páginas.

Se é verdade que a crise tem arrasado a venda de livros, cd e espectáculos de teatro ou cinema, não é menos verdade que as bibliotecas e os centros culturais estão cada vez mais cheios. A cultura tornou-se sinónimo de esperança e verdade, uma igreja laica e ecuménica onde se agregam os que deixaram de ter valor de mercado, os que nascem já condenados ao desemprego e, de um modo mais geral, todos os que se cansaram das promessas falsas, das cobardias protectoras e das contas mutantes dos políticos.

«U ma pequena luz bruxuleante/brilhando incerta mas brilhando/ aqui no meio de nós/entre o bafo quente da multidão/ a ventania dos cerros e a brisa dos mares/ e o sopro azedo dos que a não vêem/ só a adivinham e raivosamente assopram». Isto escreveu Jorge de Sena há 56 anos, e é verdade. A verdade de hoje, a notícia que os telejornais ignoram mas é mais real do que o mundo virtual do dinheiro e da miséria, o mundo dos cortes, dos memorandos, das refundações e dos resgates irresgatáveis, dos clãs do poder internacional que negoceiam entre si estratégias, lugares, perdões e salários que ofenderiam essa Deusa romana chamada Justiça, tão morta como o latim. 

Essa pequena luz bruxuleante é o que nos distingue enquanto seres transfiguradores e atravessa livros, sinfonias, pinturas, esculturas, danças, encenações teatrais, recitais, filmes. Um dia os nossos capatazes entenderão que empobrecer escolas e universidades, artes e monumentos é prolongar a crise por gerações infinitas. O Pavilhão de Portugal, por exemplo, continua a ser um escândalo de abandono; mas ainda tenho fé de que algum anjo piedoso lance um relâmpago de vergonha sobre quem possa pôr cobro a isso, antes que a obra de Siza desabe no Tejo. 

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