Cantora de ópera acusada de ser gorda. Críticos acusados de sexistas

Não é muito vulgar que a ópera seja um terreno de acusações de sexismo, ou que o índice de massa gorda de uma cantora seja apresentado pela crítica como impedimento para um papel.

Mas foi isso que aconteceu a propósito da escolha da  jovem mezzo-soprano irlandesa Tara Erraught para o papel do  jovem conde Octavian na encenação de O Cavaleiro da Rosa, levada ao palco do Festival de Glyndebourne. Os críticos do Guardian, do Telegraph, do Times e do Financial Times, todos homens, referiram-se a ela, no passado domingo, usando adjectivos como tronchuda, atarracada, badocha, inaceitável.

A resposta não se fez sentir e um coro de cantoras de ópera acusou os críticos de sexismo descarado e de nunca se ter questionado o perímetro abdominal de Luciano Pavarotti.

Montserrat Caballé, a soprano que se tornou uma  rock-star ao associar-se a  Freddy Mercury no tema de abertura dos Jogos Olímpicos de 1992, Barcelona, também nunca foi impedida de personificar a graça feminina em palco.

Mas os tempos são outros. A mezzo soprano Jennifer Johnston considera, num texto publicado no Guardian, que os críticos foram longe demais: “Praticamente nenhuma referência à sua voz, um instrumento gloriosamente bem afinado, e nenhum comentário à musicalidade, competência dramática ou à sua habilidade para comunicar e comover o público”. E salienta que numa sociedade repleta de distúrbios alimentares, pessoas com problemas de imagem, as cantoras de ópera estão cada vez menos imunes ao julgamento sobre o seu aspecto. Anna Netrebko, a bela soprano russa, foi criticada por se ter deixado engordar após a gravidez.

Finalmente ontem, a neo-zelandesa Kiri Te Kanawa veio pôr um pouco de água na fervura e dizer que a bela e promissora cantora de 27 anos foi vítima de um desastre de ‘guarda-roupa’, numa altura em que os organizadores do conceituado Festival de Glyndebourne estão desorientados com a recente morte do director. E aconselhou a cantora a simplesmente ignorar os comentários cruéis e livrar-se do fato e da peruca hedionda que lhe deram.

A questão continua no ar: a ópera, até agora aparentemente o último reduto da fantasia total, quer que as suas cantoras tenham o ‘glamour’ das estrelas de Hollywood? Já não há lugar para divas como a Bianca Castafiore desenhada por Hergé?

Os críticos não se retrataram. Tara Erraught não comentou.

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