Três manchetes

No domingo passado, o Público, o Diário de Notícias (DN) e o Correio da Manhã (CM) traziam manchetes tão diversas como são as orientações e audiências dos três diários. Mas apesar dessa diversidade detectava-se uma rara convergência de sentido entre elas. 

Assim, na primeira página do CM podia ler-se: «Privados pagam 3,6 milhões a ex-governantes – Ministros e secretários de Estado em empresas de elite da Bolsa». No DN, o título era: «Troika fez desaparecer um quarto dos salários acima dos 1800 euros». Finalmente, o Público destacava uma entrevista com o economista Philippe Legrain: «Ex-conselheiro de Durão diz que ajuda a Portugal resgatou a banca alemã».

A primeira manchete remetia-nos para relatórios de 2013 divulgados pela CMVM onde constam os salários anuais de algumas personalidades que transitaram de cargos públicos e ministeriais para postos (em geral não executivos) de empresas privadas, como a EDP, a Galp e a Galp Energia. 

O presidente executivo da EDP, António Mexia, antigo ministro das Obras Públicas (PSD/CDS), ganhou 988.573 euros, enquanto Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças (PSD) e actual presidente do Conselho Geral e de Supervisão da mesma empresa, recebeu 490.500. Também neste órgão e na qualidade de vogais, encontramos antigos ministros do PSD, CDS e PS, com salários entre 69.999 (número extraordinário!) e 33.927 euros: Celeste Cardona, Luís Filipe Pereira, Rui Pena, Braga de Macedo, Paulo Teixeira Pinto ou Augusto Mateus.

Já na Galp e na Galp Energia, em cargos executivos e não executivos, o leque dos ex-governantes é igualmente amplo, com salários entre 550.986 e 49.000 euros: Palha da Silva, Costa Pina, Fernando Gomes, Campos e Cunha, Luís Todo Bom. Finalmente, um dos casos mais reveladores é o do antigo ministro dos Estrangeiros socialista, Luís Amado, investido no cargo protocolar de presidente não executivo do Banif, um dos bancos em maiores dificuldades, com o salário de 150.611 euros. 

O retrato do sistema clientelar entre o Estado e as empresas onde os poderes públicos mantêm forte influência política poderia ser completado com muitos outros exemplos. Basta lembrar o caso paradigmático de Jorge Coelho, que passou de ministro das Obras Públicas socialista a presidente de uma empresa da área que anteriormente tutelava, a Mota Engil, da qual se afastou recentemente, reaparecendo na campanha do PS para as europeias. Campanha onde figura como mandatário outro antigo ministro, António Vitorino, agora advogado de negócios, administrador não executivo da Siemens Portugal e presidente da assembleia-geral da Brisa.

É neste puzzle que se encaixa a notícia do DN: entre o primeiro trimestre de 2011 e 2014, «desapareceu um quarto dos salários acima de 1800 euros», mas «o número de trabalhadores por conta de outrem que ganham menos de 310 euros líquidos por mês é hoje maior do que antes de Portugal entrar no programa de assistência financeira em 2011». 

Moral da história: se o clientelismo político permite que antigos  governantes  desfrutem  de rendas douradas em cargos predominantemente protocolares e susceptíveis de acumulações várias, a classe média tende a definhar e o empobrecimento do país a acentuar-se velozmente. Já se sabia que a austeridade não é para todos, que há os que a pagam duramente e os que dela estão imunizados (frequentemente, não por acaso, os mesmos que proclamam as suas excelsas virtudes, como o inefável Eduardo Catroga). 

Além disso, enquanto disparam os preços do gás e da electricidade, vão crescendo os rendimentos dos administradores das companhias que os fornecem. Mas constatar contrastes tão gritantes só pode ser fruto da demagogia e da inveja, incuráveis pecados nacionais… 

Terceira peça – porventura a mais inesperada do puzzle –, a entrevista desassombrada do ex-conselheiro de Durão Barroso ao Público, cuja leitura integral é absolutamente obrigatória. Trata-se de uma desmontagem implacável, feita por quem conheceu a maquinaria por dentro, do carácter irracional de uma política de austeridade «completamente contraproducente» – que deixou Portugal «bem pior do que antes do programa, e a dívida privada não caiu». 
Philippe Legrain explica com meridiana clareza como os resgates a Portugal e Grécia foram geridos essencialmente para favorecer os interesses dos bancos alemães (e franceses). Ou ainda: Merkel «aceitou resgatar os bancos alemães com os empréstimos a Portugal e à Grécia». 

Legrain não conseguiu influenciar o rumo dos acontecimentos, mas legou-nos um testemunho de valor inestimável sobre como a Europa foi arrastada para o caos – enquanto se mantinha a impunidade do sector financeiro, cujo aventureirismo continua a ser pago a peso de ouro pelos contribuintes.