Afinal, elas pensam

Quando, em 2007, a interrupção voluntária da gravidez foi aprovada por referendo, muitas vozes se ergueram contra esta medida de protecção da saúde das mulheres, profetizando que os abortos se multiplicariam. 

Basta ler os romances de Agustina Bessa-Luís (e isto para citar apenas uma obra que deveria ser considerada o supremo cânone literário) para perceber que as mulheres interrompem gravidezes desde tempos imemoriais, e que aliás essa prática era corrente – e perigosíssima, levando muitas vezes à morte e deixando levas e levas de crianças órfãs – antes da descoberta dos modernos métodos contraceptivos, a começar pela pílula. 

Agora, as estatísticas mostram-nos consistentemente que, pelo contrário, depois da aprovação da lei, o número de interrupções voluntárias da gravidez tem vindo a diminuir: em 2013 registaram-se 17.964 interrupções de gravidez, menos 6,2% do que no ano anterior. 
Diferentemente do que pensam alguns militantes do masoquismo, as mulheres não abortam por desporto, tédio ou irresponsabilidade. 
É significativo, aliás, que 23,6 % das mulheres que abortaram em 2013 estejam desempregadas. Houve um aumento do número de mulheres desempregadas a interromperem a gravidez, nos dois últimos anos. Do ponto de vista da estratificação social, as desempregadas representam o grupo maior, seguido pelas trabalhadoras não qualificadas e pelas estudantes. 

Estes dados devem fazer-nos reflectir sobre a influência que a degradação económica tem no declínio da natalidade. Esta, de facto, caiu em consequência da escravidão económica a que temos estado sujeitos nos últimos anos. 
E continua a faltar formação e informação sobre métodos de contracepção nos extractos menos alfabetizados da população ou nas camadas mais jovens. 

Mitos como o da eficácia do coito interrompido ou o de que numa primeira relação sexual ninguém engravida continuam a circular pelas escolas, à revelia dos programas de educação sexual, que demasiadas vezes explicam em detalhe científico o acessório e esquecem o básico, dito de forma clara e eficaz. 

Vivemos na era transversal das Terminologias Linguísticas (hipostasiadas na tenebrosa TLEBS), que servem para fazer da ignorância um rendilhado palavroso, afastando os mais jovens não só do gosto pelo conhecimento, como até de algumas informações básicas de sobrevivência. 

Outra informação interessante do relatório agora publicado pela Direcção Geral de Saúde é a que evidencia que cerca de três quartos das mulheres (72,2%) que abortaram em 2013 nunca o tinham feito antes. 
A percentagem de mulheres que assume ter feito já três ou mais abortos é de apenas 1,4%. 

Por outro lado, verifica-se que o método cirúrgico – mais caro e mais invasor – é ainda maioritário nas clínicas privadas, às quais surpreendentemente continua a recorrer um elevado número de mulheres, enquanto nos hospitais públicos a intervenção é feita através de medicamentos. 

Continua a mostrar-se necessário um maior investimento na educação e sobretudo nos serviços dedicados ao planeamento familiar. Mas, pelo menos, ficou já provado que as mulheres não abortam como quem come chocolates. Afinal, por estranho que pareça, elas pensam. 

inespedrosa.sol@gmail.com