Amar um filho não distingue ninguém

Antes de a droga entrar em força nas grandes cidades, o Dragão era o rei dos bandidos do Casal Ventoso. Na escola primária o Miranda falava-nos dele, do que era capaz, da forma como despachara quatro ou cinco com requintes de malvadez, do bom que era para os seus amigos, do preço que levava para…

Impressionaram-me as histórias míticas do Dragão, nunca percebi se eram verdadeiras, sei que numa noite de infância, a minha mãe e avó fecharam as persianas e pediram-me silêncio. Tive tempo de ver vários carros da polícia descerem a Rua Correia Teles a caminho do bairro onde ninguém entrava. Os meus amigos do Casal juravam-me que havia túneis onde se escondiam os que a polícia procurava, recordo-me de ter pensado que o Dragão não seria apanhado.

Estávamos seguros em casa. A polícia a subir e a descer e nós fechados mas à escuta. O Dragão morreria nessa noite de finais da década de 1970. Um assassino implacável que amava os filhos e, ao que se diz, o responsável pela entrada da heroína no bairro que viria a ser o da droga.
Acompanhou-me a juventude. Fez-me pensar. E imaginar. O Dragão foi um livro de aventuras que os colegas de escola, os que os puderam ver, levavam para as conversas como uma manilha de trunfo. Apesar de morto, o seu nome continuava a provocar respeito e pavor.

Esta é a memória que me faz sorrir quando amigos ou conhecidos me definem como um bom pai. Muito agradecido, mas pouco ou nada significa, é o mínimo. Porque o amor é uma palavra incondicional – o exercício de amar, mesmo nas suas formas mais bizarras, não é um exclusivo das ‘boas’ pessoas, sensíveis, bondosas, altruístas. Mesmo um carniceiro, mesmo o Dragão, falho de moral, mesmo o mais feroz assassino na fronteira da demência, tem alguém a quem quer muito, alguém a quem diz, mesmo para si, ‘amo-te!’.

Não é uma palavra que distinga. Quando se ama um filho não é um sentimento maior, é apenas uma manifestação de animalidade. Amar só é realmente maior quando se é capaz de o fazer em relação a uma abstracção. Em relação aos outros, ao mundo e até ao que não se compreende. Esse amor é despojamento e humildade. Está ao alcance dos tolos ou dos anjos. Não está tanto ao nosso alcance, embora possamos tentá-lo.

Foi-se o Dragão e vieram outros. 

O Ata.

Que conheci na adolescência. Gostava da minha avó Joaquina, cumprimentava-a na rua. Revoltou-se quando alguém lhe roubou a carteira na praça. A avó chorou e eu com ela. Guardara a reforma num envelope e aproveitara para ir comprar peixe e fruta, nada lhe ficara. Chegou aos ouvidos do Ata e o dinheiro veio-lhe devolvido com envelope e tudo, não sei como o fez e as consequências. Melhor não saber. 

Não foi tão mítico como o Dragão, mas por ele também fechámos as persianas. Estávamos ainda de televisão ligada na companhia da Dona Germana e da Dona Maria (que ocupavam quase sempre o sofá aos serões), quando ouvimos vários tiros seguidos e os pneus e motor de um carro a darem de si.
Janela encerrada e depois aberta. E um homem no chão na rua a seguir à nossa, na esquina da Correia Teles com a Sampaio Bruno. O Ata. Que apesar de ter sido baleado com sete ou oito balázios não morreria. Voltou ao activo e a avó tranquilizou-se.    

Um dia escreverei sobre as minhas três casas. Sobre esta em particular. Ainda não é o tempo. Acredito que alguém que viveu sempre na mesma e nunca mudou de emprego tem uma vantagem. De si deixou decerto menos pelo caminho. Sofreu mortes, com certeza. Acabou amizades ou viu filhos seguir numa outra estrada, certamente. Mas nunca perdeu o rasto de si próprio – nas manhãs passa pelo mesmo corredor de infância, pela sala onde a mãe lhe preparava fruta esmagada, pelo quarto onde sofreu pela primeira vez de amor. E no escritório ou na fábrica reconstituirá, passo a passo, os seus diferentes momentos. Alguém assim, se for insatisfeito, poderá fazer contas e concluir que deveria ter aberto horizontes, mas tem a vantagem de não ter deixado parte de si nas casas que abandonou ou nos empregos a que virou costas. Faço um esforço para não esquecer o que de mim se perdeu. Coisas que desapareceram. A capacidade de sorrir da juventude ficou numa casa de Campo de Ourique, tenho a certeza. Talvez passe por lá e bata à porta. Talvez o que me falta esteja à vista.

Memórias. 

Minhas, claras. Que espero ajudem a convocar algumas das suas. Porque por muito que nos esforcemos não podemos esquecer quem amámos. Ou nos deixou uma marca amarga. Amigos e bem-intencionados abraçam-nos com essa absurda ideia e nós, quando estamos do outro lado, fazemos o mesmo: tens de esquecer e seguir em frente. Como se fosse possível. À próxima pessoa que precisar da minha amizade, e julgar que se pode deixar de lembrar, dir-lhe-ei para construir um museu na sua memória. Um museu que poderá visitar sempre que quiser, como se caminhasse no Prado ou no Louvre. Sim, uma boa ideia. Não querer esquecer quem se amou. Ou detestou. Mas plantá-los num museu dentro do que somos. E voltar a viver. l