Próxima paragem: Campanhã

Uma mercearia, um clube desportivo, um pequeno restaurante, um albergue social e seis ‘ilhas’, onde residem dezenas de pessoas. A rua de Miraflor, uma das inúmeras vias da freguesia de Campanhã, é estreita, mas tem lugar para tudo isto e ainda mais. Nomeadamente para 11 armazéns que em tempos serviram como espaços de ‘retém’ de…

Nos últimos 20 anos, esta zona perdeu muito da sua actividade e tornou-se periférica”, conta ao SOL João Lafuente, que juntamente com a sua mulher, Manuela Monteiro, ressuscitou dois armazéns, baptizados de Espaço MIRA e MIRA Fórum. Ambos são dedicados à exposição e discussão da arte da fotografia. “Percebemos que aqui no Porto não havia um ponto de encontro para falar de fotografia”, explica Manuela, “e começámos a pôr a hipótese de criar um espaço onde a fotografia pudesse entrar em diálogo com outras áreas artísticas e com as pessoas. Numa conversa informal com a arquitecta Adriana Floret, que orientou estes projectos de reabilitação, falámos disso e ela sugeriu estes armazéns”.

A localização não os entusiasmou à primeira, mas perceberam de imediato a forte ligação que tinham a esta freguesia da Invicta. “O João morou neste prédio aqui em frente na infância e adolescência, por isso fartou-se de ver os telhados dos armazéns”, diz Manuela, apontando para as construções situadas nas traseiras das galerias. “O meu pai tinha uma fábrica por aqui e uma parte da minha família estava ligada à CP, por isso visitavam muitas vezes estes armazéns”. E assim, em 2012, a poucas horas de uma viagem até à Índia, o casal fez uma visita ao espaço sugerido pela arquitecta e decidiu “na hora” que aquele era o local perfeito para o seu projecto. “Foi emotivo e intuitivo. Nunca nos arrependemos. São muito melhores do que achávamos inicialmente. Tem sido uma sucessão de boas surpresas”, refere a proprietária.

Hoje estes dois armazéns são uma espécie de micropólo cultural criativo, que tem vindo a conquistar um público assíduo. As galerias apresentam propostas diversas: se o Espaço MIRA aposta numa programação “transartística”, o MIRA Fórum é um espaço de “banda larga”, aberto a vários projectos. O resultado é um cocktail transversal de público e de artistas, que tem como fio condutor a fotografia, mas que toca noutras expressões artísticas.

Manuela acredita que esta adesão se deve à programação, mas também, e paradoxalmente, à localização. “É completamente fora do circuito habitual. E isso atrai as pessoas. Também há uma interacção muito grande com a comunidade local, que nos recebeu muito bem e que adora esta nova dinâmica. De certa forma, a nossa presença voltou a colocar Campanhã no mapa. E isso é bom para a auto-estima da comunidade”.

Consequentemente, a programação tem sempre em conta o lugar e o seu historial. “O armazém faz parte da história de Campanhã, que dependeu muito da indústria e antes disso da agricultura. Hoje a freguesia está marcada pelo abandono industrial e pelo facto de ser uma das mais pobres e periféricas da cidade”, refere Rita Breda, um dos elementos que compõem a equipa de curadoria do Espaço Mira. “Foi importante pautar a programação em função disso”.

Além da ligação às actividades comerciais e industriais, a zona possui um passado artístico, não escrito, muito rico. Quem dá conta deste facto é José Maia, responsável pela equipa de curadoria do Espaço MIRA: “Dificilmente associamos Campanhã às artes. Mas várias figuras ligadas à fotografia viveram nesta parte do Porto. Como Aurélia de Sousa, uma grande retratista com um percurso fotográfico desconhecido do público, que foi uma figura muito à frente do seu tempo. Ou Aurélio da Paz dos Reis, o nosso primeiro realizador e fotógrafo, colega de António Carneiro ou de Agostinho da Silva, que também habitaram a zona. No fundo são eles os nossos pontos de partida”.

Os espaços afirmaram-se rapidamente na cena artística portuense, mas os responsáveis parecem ter objectivos mais ambiciosos que não se ficam por aqui. “Queremos expandir o Espaço MIRA para os arredores, como a freguesia do Bonfim, através da ocupação de vários espaços. Queremos inscrever a zona e dá-la a conhecer. Em termos geográficos e históricos”, conclui o curador.

Os primeiros sinais dessa ocupação podem ser vistos até hoje no Reservatório de Nova Sintra, na Casa Oficina António Carneiro, no Museu Militar e no Espaço MIRA, com a exposição Liberdade, Memória e Acção, onde 23 artistas homenageiam estas quatro grandes figuras que marcaram a cultura e a história da cidade do Porto.