Processo desaparecido encontrado um ano depois

O processo que se perdera no Tribunal da Relação de Lisboa, em Novembro de 2011, reapareceu mais de um ano depois no mesmo local, com o mesmo estrondo e mistério que provocara quando se esfumou.

Trata-se da acção cível colocada pelo juiz desembargador Eurico Reis e duas familiares contra a CP e a Refer. O pai do magistrado faleceu numa estação da linha de Sintra, a 11 de Abril de 1994, após um acidente que o desembargador considera ser da responsabilidade da CP (a operadora ferroviária) e da Refer (gestora da infra-estrutura ferroviária).

O primeiro julgamento acabou por ser anulado, tendo ocorrido um outro em que as empresas foram condenadas, em Fevereiro de 2011, ao pagamento de uma indemnização de mais de 155 mil euros.

Refer e CP recorreram então para a Relação, sendo obrigadas a depositar uma caução de valor idêntico ao da indemnização. E é este tribunal superior que se torna palco de um denso mistério: quando o processo está para ser distribuído pelos juízes que decidiriam os recursos das empresas, desaparece da secção sem deixar rasto. Era a primeira vez que tal acontecia: cinco volumes e um conjunto indeterminado de cassetes com a gravação das sessões de julgamento no Tribunal de Sintra – obras que não se levam num bolso nem tão-pouco numa pasta – sumiam.

Participou-se o crime ao Ministério Público e funcionários e Polícia Judiciária (PJ) penitenciam-se em buscas por todos os cantos da antiga casa da Suplicação. Passou um ano e nada do famigerado, com a PJ a tentar apurar responsabilidades.

As partes, entretanto, digladiavam-se no processo. Eurico Reis insinua que a Refer e a CP são as autoras do bruxedo e as empresas respondem à altura: não tinham acesso ao tribunal, ao contrário do desembargador, que pertencia à casa. Mas logo se encontra remédio para o feitiço. Como os originais do processo ficam sempre no tribunal de primeira instância que o decidiu de mérito – neste caso, Sintra –  é dada ordem para que se reconstituam os autos a partir da documentação de origem.

Eis senão quando, e com enorme espanto, se verifica que as artes do Demo estenderam-se a Sintra. Tratava-se, afinal, de um duplo mistério: também aí o processo levantara asas.

Processo disciplinar e multa 

A Relação de Lisboa parte então para a reforma dos autos, contando com as cópias que as partes têm em seu poder. As empresas disponibilizam-se, enquanto Eurico Reis manifesta o seu desacordo, embora sem sugerir alternativas, trespassando o processo com requerimentos, reclamações e pedidos de aclaração de despachos, que fazem o juiz titular passar as passas do Algarve. 

Numa entrevista ao jornal i, o desembargador responsabiliza tudo e todos, nomeadamente os colegas da Relação. Luís Vaz das Neves, o presidente, não leva amargos de boca para casa: extrai certidão para o Conselho Superior da Magistratura, que abre um processo disciplinar e condena Eurico Reis a uma multa de 1.785 euros, que o desembargador acabou de pagar recentemente.

O restauro dos autos seguia, mas  a saga continua: cinco meses depois, a 27 de Março de 2013, sem que alguém tenha sentido o incenso do enxofre ou uma porta a bater, o processo reaparece na secção da Relação que tinha sido virada do avesso quando se deu, sabe-se lá como, o pecado original. Por isso, a PJ mantém em aberto o inquérito.

Na Relação, o assunto parecia resolvido. O juiz relator põe finalmente mãos à tarefa, mas desta vez são as surpresas tecnológicas que causam embaraço: faltava uma cassete com a gravação do julgamento e outra aparecia repetida. Resultado: o depoimento de duas testemunhas fora à vida. E assim o relator teve de anular essa parte do julgamento  e ordenou nova inquirição das ditas testemunhas pelo Tribunal de Sintra, prosseguindo os autos os seus normais trâmites. Aguarda-se o desfecho, sem mais vicissitudes e com o devido suspense. 

felicia.cabrita@sol.pt