Homem ou mulher, eis a questão

Tenho escrito com alguma frequência sobre os sinais de decadência da civilização ocidental. Foi uma civilização que engordou, aburguesou-se e perdeu o nervo. Esses sinais de decadência são, em geral, comuns a outras civilizações em iguais períodos. No declínio do Império Romano verificaram-se muitos dos sintomas que hoje observamos nos corpos doentes das nossas sociedades:…

O último sinal deste trajecto descendente do nosso mundo foi o último Festival Eurovisão da Canção, onde uma mulher com barba – uma cantora com nome de homem ou vice-versa – saiu vencedora. A impressão causada foi de confusão total. E mesmo quem, de espírito aberto, se dispusesse a perceber o que estava a acontecer, deve ter tido a sensação de que tudo está a andar depressa demais. 

Uma mulher com barba ganhar o eurofestival? Será possível?
E qual terá sido o objectivo de quem criou tão insólita figura – e, sobretudo, de quem a premiou? Dizer que o género não existe? Que homem e mulher tendem a fundir-se num ser sem género, nem homem nem mulher? Pensar nisto recorda-me, vá lá saber-se porquê, uns animais híbridos que são produto dos cruzamentos entre os cavalos e os burros. Chamam-se 'machos' e 'mulas', e não podem reproduzir-se porque são estéreis. 
Mas se a mensagem 'filosófica' do eurofestival foi essa, então estamos perante uma manifestação de nihilismo, de desesperança, de anúncio do fim dos tempos. 
Claro que isto não teria qualquer importância e seria levado à conta de brincadeira se tivesse acontecido num qualquer festival alternativo ou num concurso promovido por canais de televisão tipo SIC Radical. Mas o que causa perplexidade é ter ocorrido num concurso organizado por estações de referência e contar com os votos de 350 milhões de telespectadores. 
Parece que o culto do absurdo, que até pouco era apanágio de minorias que desafiavam o status quo, se tornou subitamente um fenómeno de massas. E isso assusta. Que as minorias sejam respeitadas (e até acarinhadas), é saudável. Que as minorias ocupem subitamente o palco e transformem as suas práticas minoritárias em hábitos correntes, tal constitui um sinal muito perigoso pois conduz directamente à perda de referências.
O que pensará uma criança de cinco anos ao ver no ecrã da sua televisão uma mulher com barba a cantar num palco iluminado, aplaudida por milhares de pessoas? 

Repetem os apoiantes da mulher barbuda que se tratou de uma demonstração de liberdade, para mostrar que toda a gente pode fazer o que quer desde que não interfira com a liberdade do outro. 
A questão da liberdade não é assim tão simples. Um dia destes, um canal transmitia um programa sobre nudistas em que um deles protestava porque o padre da aldeia não os deixava entrar nus na igreja. E dizia que isso era uma manifestação de "mentalidade medieval", acrescentando, porém, que havia cada vez menos pessoas assim. 
Esta última frase vai ao encontro do apoio à mulher barbuda. Todas as sociedades vivem de convenções, de regras não escritas mas comummente aceites. Quando essa base estala, sucede-se a confusão e o caos. 

Enquanto a farsa do eurofestival sucedia do lado de cá, do outro lado da antiga 'Cortina de Ferro' o senhor Putin, um homem gelado e sem escrúpulos, sorria. Mais tarde, o vice-presidente do Parlamento, Vladimir Zhirinovsky, diria: "Eles já não têm homens e mulheres. Têm 'aquilo'. Libertámos a Áustria há 50 anos mas não o devíamos ter feito". Nós rimo-nos desta frase. Mas não devíamos fazê-lo. É muito perigoso rir dos nossos inimigos. Sobretudo quando são poderosos.
Vladimir Putin assiste aos sinais de decadência da Europa ocidental e nós vamos dando-lhe razões para sorrir. Quando os ucranianos reclamam pela ligação ao Ocidente, quando denunciam o imperialismo russo, o vice-primeiro-ministro da Rússia, Dmitry Rogozin, responde: "[O eurofestival] mostrou aos que defendem a integração europeia o seu futuro europeu: uma rapariga de barba".
Esta vitória de uma drag queen no maior festival europeu de música ligeira foi um inesperado presente que a Europa deu aos russos no momento em que se discute a Crimeia e o futuro da Ucrânia. Porque do lado de lá presta-se ao ridículo e do lado de cá enfraquece a opinião pública. Muitos europeus, sobretudo os conservadores mas não só, começam a duvidar dos caminhos por onde isto vai – e a olhar com um misto de inveja e receio para o lado de lá, onde há ordem, autoridade e ainda não se confundem os sexos…

A democracia tornou-se uma barriga de aluguer onde estão a germinar todas as sementes da sua destruição. 
A indisciplina nas escolas; a dificuldade que a Justiça revela de punir e condenar os culpados; a luta política constante e desgastante, dificultando a identificação de objectivos nacionais; a generalização do consumo de drogas; a perda de uma base de regras comummente aceites – tudo isto se volta contra a democracia e a enfraquece. Em vez de se fortalecer, de se enrijar com o tempo, a democracia vai-se desfazendo, como a madeira corroída pelo caruncho. 
O regime democrático já não tem nada a que se agarrar para lá do voto – e aí as coisas também não estão bem, pois a abstenção é cada vez maior.
E isto não é um problema dos governos, nem dos défices, nem da austeridade, nem dos cortes de salários e pensões, nem de nada disso. Aliás, a senhora Merkel – educada no Leste – é que tem, ainda assim, posto alguma ordem no convento. Caso contrário, o regabofe seria maior: cada país fazia o que queria, não havia controlo das contas nem de nada, era a rebaldaria completa.

Por razões de vária ordem, eu tive uma educação bastante avançada para o seu tempo. Depois de acabar o liceu, tirei o curso superior numa Escola de Belas-Artes onde o ambiente era muito permissivo, recheado de candidatos e candidatas a 'artistas', com todos os sinais exteriores que poderão imaginar-se. Quando ainda estudava, comecei a trabalhar num ateliê de arquitectura (liderado pelo arquitecto Manuel Tainha) onde todos abraçávamos entusiasticamente as correntes modernistas. E depois dirigi durante mais de duas décadas um jornal (o Expresso) onde o ambiente era efervescente. 
Convivi permanentemente com a modernidade e pratiquei-a, conheci muita gente à frente do seu tempo. Vi e li muito. E, no entanto, se me dissessem que uma cantora com barba ia ganhar um dia o Festival da Eurovisão, eu consideraria isso uma completa impossibilidade. 

Julgo que muita gente que vai atrás destes fenómenos, que abraça sofregamente o politicamente correcto, não o faz por convicção mas por medo de parecer antiquada, old fashion, bota-de-elástico. Ninguém quer parecer mal. É sempre a história do rei vai nu. Como sucedeu neste caso, a sociedade ocidental pode pôr-se subitamente a representar uma peça de Ionesco pensando que é a própria realidade.
A explosão dos media, do online, das redes sociais, faz-nos viver aceleradamente tempos perigosos. Entrou-se noutra dimensão. Os fenómenos de imitação, por mais absurdos que por vezes se apresentem, alastram como fogo em palha. 
Embora eu não seja católico, perante esta vitória de uma mulher barbuda num festival organizado pelos canais ditos 'sérios' e emitido em canal aberto no horário nobre das televisões, só me ocorre dizer: "Valha-nos Deus!".