Ficção e realidade não andam de mãos dadas

Em 1955, integrando a comitiva norte-americana, Grace Kelly aterrou na cidade francesa de Cannes com o objectivo de promover Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock. A actriz tinha acabado de ganhar o Óscar pelo seu desempenho em The Country Girl – Para Sempre (1954) e a sua fama já a precedia na Europa. 

Apadrinhada pelo mestre Hitchcock – com quem também filmou Chamada para a Morte e A Janela Indiscreta -, o talento da actriz era reconhecido mundialmente e, apesar de a sua carreira só ter durado seis anos, sempre houve quem defendesse que foi Grace Kelly e não Marilyn Monroe quem perpetuou o glamour associado às estrelas de Hollywood. Por isso, naquele longínquo ano de 1955, Grace foi recebida com honras de Estado pelo Governo francês, que organizou uma série de encontros entre a actriz e destacadas figuras europeias. Entre elas estava o príncipe Rainier III, do vizinho principado do Mónaco.

Quase 60 anos depois, Grace Kelly voltou a abrilhantar o Festival de Cannes quando o filme Grace de Mónaco, com Nicole Kidman no papel principal, abriu o certame.

Grace abandonou o cinema definitivamente um ano depois de ter conhecido Rainier, em Abril de 1956, para se casar com o príncipe do Mónaco, mas poucos anos depois corria que a actriz estava arrependida de ter deixado o cinema. Tal como a sua vida na fase pós-Hollywood, o filme tem sido alvo de muita especulação. Logo para começar, a presença em Cannes com honras de abertura foi questionada, depois de os filhos da princesa – Alberto, Carolina e Stéphanie – terem criticado fortemente a longa-metragem e informado a organização do festival que, se assim fosse, não marcariam presença no evento. Em comunicado divulgado à imprensa, os herdeiros de Grace Kelly consideraram que o filme “não pode, de forma alguma, ser classificado de cinebiografia” e o “trailer fantasioso reforça a convicção de que se trata de uma produção baseada em referências históricas e literárias duvidosas”.

Mas a disputa entre a família Grimaldi e a produção de Grace de Mónaco começou muito antes. Ainda durante as filmagens, a casa real enviou diversas observações sobre o guião, que considera ter várias imprecisões históricas, mas foi ignorada pela produção. “A família não quer de forma alguma estar associada a este filme e lamenta que a sua história tenha sido distorcida com fins meramente comerciais”.

Em resposta ao comunicado, o realizador Olivier Dahan – que em 2007 assinou La Vie en Rose, biopic sobre Édith Piaf que valeu à actriz francesa Marion Cotillard o Óscar de Melhor Actriz – disse que se sentiu “insultado” pelos ataques dos monarcas monegascas. “Nunca pretendi fazer uma cinebiografia. Não há nada que mereça este drama. Há coisas reais e outras inventadas: é o meu direito à ficção. Mas quando leio que tudo foi feito com fins comerciais, sinto-me insultado”, afirmou em entrevista ao semanário Le Journal du Dimanche.

Este tipo de contestação da parte de familiares de figuras retratadas no cinema já se tornou habitual (no ano passado, aconteceu o mesmo com Diana, filme sobre a princesa de Gales). Disputas com o distribuidor é que são menos óbvias. Mas Olivier Dahan também não escapou ao conhecido mau feitio de Harvey Weinstein, da Miramax, que comprou os direitos de distribuição do filme para os Estados Unidos.

Centrado num período curto da vida da princesa – quando, seis anos depois de se casar, Grace Kelly tem de decidir entre regressar a Hollywood a convite de Hitchcock para protagonizar Marnie, ou ficar ao lado do marido, numa altura em que o Mónaco está a passar por uma crise política com a França -, Weinstein achou que o filme tal como foi apresentado pelo realizador não apelava ao mercado norte-americano e exigiu mais cenas da actriz em Hollywood. Dahan não cedeu e a Miramax retirou o filme da sua lista de estreias para 2014.

alexandra.ho@sol.pt