A Europa e os ‘donos da democracia’

Foi claro o sucesso dos movimentos nacionalistas, eurocépticos e identitários nas eleições europeias. Também não é de admirar, na medida em que representaram e cristalizaram uma reacção popular à retórica ‘europtimista’ num tempo que, política e economicamente, se tornou difícil para os povos europeus.

É curiosa a reacção que as vitórias desses movimentos, especialmente da Frente Nacional (FN) francesa, despertou entre os comentadores, mesmo entre os mais democráticos e liberais, em França e em Portugal: uma reacção e uma perturbação que vale a pena examinar, já que parece, pelo modo e pelo conteúdo, assumir a natureza de uma contradição entre verdades dogmáticas, de fé.

O povo é soberano e em princípio não se engana. Mas se votar, democraticamente, no que os democratas, os ‘donos da democracia’, declaram não democráticos, como é que é?

É um espectáculo pouco edificante ter estas discussões perante o povo, os eleitores, aqueles de quem, de certo modo, se duvida, se quer pôr em causa a razão e o bom senso.

Porque a FN – como o UKIP inglês e a maioria dos partidos eurocépticos ou identitários – não pretende em nenhum ponto do seu programa, acabar com a democracia ou pôr termo às regras da alternativa democrática ditadas pelas eleições.

Nem isso seria possível.

Assim o que os donos da democracia pretendem é defender uma espécie de coutada ideológica, delimitada pelos valores da esquerda histórica europeia – internacionalismo, igualitarismo, as tradições do oitocentismo e da utopia do século XX, mais o politicamente correcto, herdado das revoltas estudantis dos anos 60. 

O que parece preocupar estes ‘donos da democracia’ é a reivindicação em muitos países e por muitos eleitorados europeus da questão nacional, dos valores da identidade histórica, a resistência à grande amálgama dos povos soberanos empurrados para uma manjedoura consumista e ideologicamente correcta, que seria o futuro mundo feliz.

A resistência é diferente de país para país e pode até assumir formas radicais aqui e ali: os nacionalismos não são – por definição – iguais de nação para nação. Por exemplo, o nacionalismo português é cosmopolita e universalista, baseado na igualdade e na fraternidade racial, enquanto o francês ou o inglês têm, historicamente, outras bases e por isso outras formas.

É a História que assim o determina. Mas isso não impede que hoje os franceses queiram de volta a centralidade da nação. Marine Le Pen e parte da nova geração da FN quebraram até o tabu anti-gaullista de Jean-Marie Le Pen e endossaram a ‘Europa das Nações’ de Charles de Gaulle.
O que está em jogo e o que se quer saber, é se vai continuar o monopólio dos ‘donos da democracia’, ou se os povos podem escolher as forças políticas e os líderes que quiserem.