Somos todos retornados

Primeiro, as pessoas sentiram que o seu passado se transformara numa grande mentira, ou – pior – num pecado: foi a fase do «vivemos acima das nossas possibilidades». 

Quem tem filhos começou a punir-se por não ter sabido acautelar o futuro da prole, e a interrogar-se sobre o que tinha feito de mal. Quem não tinha ainda filhos, começou a desistir do sonho de os ter. O país inteiro viveu o complexo e a raiva que terão sentido os chamados ‘retornados’ em 1975, quando se viram literalmente despojados do seu chão e das conquistas de uma vida.

Em que momento pecámos? Quando cometemos a ousadia de levar a família de férias para o estrangeiro? Quando comprámos aquelas acções bancárias que nos foram impingidas como um investimento fantástico e afinal valem zero? Quando nos endividámos para comprar uma casa em vez de arrendar – porque era mais barato e criaríamos um valor para os nossos descendentes? 

A lista diária dos leilões públicos de apartamentos suburbanos é pungente: atrás de cada um daqueles anúncios está uma família que nunca foi rica e que agora se encontra entregue à miséria. Não aparecem mansões com piscina nestas listagens. Os magnatas que fogem ao fisco em milhões de euros não vêem as suas contas bancárias penhoradas: mas o cidadão que deva mil e poucos euros vê-se de repente sem hipótese de comprar o pão de cada dia, até que devolva a astronómica soma, ou se suicide, para desonerar o país.

Por conseguinte, o crime não foi o de vivermos acima das nossas possibilidades, mas sim o de nunca termos tido as mesmas possibilidades que continuam a ter os que sempre dominaram tudo. 
O erro do nosso passado foi o de considerarmos que a democracia estava instituída e que as leis eram iguais para todos. 

Entretanto, a vasta multidão de servidores do Estado começou a sentir ligeiramente na carne o ferrão da insegurança, que desde há muitos anos tortura a multidão ainda maior dos trabalhadores do sector privado ou dos pequenos empresários.

Acresce que a protecção corporativa de quem não é funcionário público é nula, pelo que as perseguições e os ataques aos direitos desses trabalhadores são sistematicamente silenciados. 
A sobretaxa do subsídio de Natal não afectará os trabalhadores a recibo verde, pela simples razão de que nesse mundo não existem subsídios de espécie alguma. No mundo dos empresários por conta própria, nem subsídio de desemprego existe. 

Desfeito o passado como ilusório, as pessoas começaram a viver para o presente, acreditando que, com empenho e fé, o futuro poderia resgatar os erros de outrora e as agruras de agora. 

Mas, feitas as despedidas à troika, o discurso dos ‘sacrifícios’ prossegue, e a vingança governamental face aos chumbos do Tribunal Constitucional anuncia-se como sobrecarga de impostos – ou seja, nova martirização dos mais martirizados: aqueles que vivem do ‘empreendedorismo’, tão gabado em teoria e tão desprezado na prática.

Despojadas de passado, presente e futuro, as pessoas animalizam-se: tornam-se sobreviventes do instante, sem contemplações éticas de espécie alguma. 

O discurso catastrófico em curso não baixa apenas a qualidade de vida, mas também e sobretudo a qualidade da alma dos portugueses, acentuando-lhe a cobardia, que é a mãe de todas as infâmias, e nunca produziu senão pobreza, injustiça e infelicidade.