Os violadores e o ‘faquir nu’

«Regressei à Índia no final de 1914 com a missão de espalhar a verdade e a não-violência pela humanidade». Não é preciso ser bruxo para perceber a quem pertencem estas palavras:Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), apóstolo da paz e ‘pai’ da Índia independente, que há precisamente 100 anos deixou a África do Sul rumo à sua…

Chegara a Durban em 1893, para defender em tribunal um rico comerciante muçulmano. A sua estreia como advogado em Bombaim não podia ter corrido pior, mas desta vez conseguiu negociar um entendimento que deixou ambas as partes satisfeitas. E, dos 70 casos seguintes, só perdeu um.

Mas na África do Sul conseguiu muito mais do que isso. Logo à chegada sentiu na pele a discriminação de que os indianos eram alvo e por isso promoveu a organização dos seus conterrâneos, de forma a poderem lutar pelos seus interesses. Com sucesso.

Conseguiu também que os mineiros vissem os seus salários melhorados, defendeu os direitos dos zulus, usou os seus dotes de enfermeiro para cuidar de vítimas da peste, organizou um corpo de ambulâncias durante a guerra Boer, fundou um jornal e duas quintas comunitárias. O seu trabalho junto dos mais pobres e desfavorecidos valeu-lhe o cognome de ‘Mahatma’, o equivalente a ‘santo’ ou ‘grande alma’, nome por que começou a ser conhecido também em 1914. E note-se que a sua grande obra ainda nem tinha começado…

Quem nos conta estes episódios é justamente o neto do Mahatma, Rajmohan, no livro Gandhi. The Man, His People and The Empire (Gandhi. OHomem, o seu Povo e o Império), cuja leitura terminei há dias. Trata-se de uma biografia apaixonante de uma das grandes figuras do século XX.

Gandhi teve uma vida cheia: casou-se aos 13 anos; aos 19, desafiando o seu clã, foi para Londres para estudar Direito, não sem antes prometer à mãe que não tocaria em álcool, não comeria carne, nem cometeria adultério. Na capital inglesa tentou tornar-se um perfeito cavalheiro, inscrevendo-se em aulas de danças de salão, de francês, de violino e de dicção. Depois despiu as elegantes roupas ocidentais e abraçou a simplicidade. Em 1906 faria um voto de pobreza e de castidade, renunciando às posses e aos prazeres do sexo.

Na Índia, tomou em mãos não uma, mas três missões ‘impossíveis’: libertar o país do jugo britânico; promover a convivência pacífica entre hindus e muçulmanos; acabar com a ‘maldição’ dos intocáveis, cuja condição era tão miserável que, para algumas castas, o simples facto de avistar um intocável requeria um ritual de purificação.
Usando como principais armas a sua inteligência e enorme espírito de sacrifício, conseguiu elevar o estatuto dos intocáveis e expulsar os britânicos – Churchill, que desdenhosamente lhe chamou «faquir nu», nunca lhe perdoou isso. Quanto à paz entre muçulmanos e hindus, não conseguiu evitar uma carnificina que se saldou em centenas de milhares de mortos.

Hoje a Índia parece viver novamente dias conturbados e de violência. Notícias de violações e assassínios bárbaros de mulheres chegam-nos com uma frequência alarmante. Há dias, duas raparigas foram encontradas enforcadas numa árvore, depois de terem sido violadas em grupo. O que teria pensado o apóstolo da paz e da castidade disto? 100 anos depois do regresso de Gandhi à pátria «com a missão de espalhar a verdade e a não-violência», é altura de voltar a honrar o seu extraordinário exemplo. 

jose.c.saraiva@sol.pt