Uma história de verdadeiros maçons

Em Espanha, milhares ocuparam as ruas com velhas palavras de ordem contra a monarquia. Afinal, uma coisa era Juan Carlos, outra a continuidade no poder de seus filhos, netos ou outros herdeiros. Os ‘nossos irmãos’ estão a ferro e fogo. Por um lado, a Catalunha e o País Basco num fermento de acumulada revolta e…

É um bom ponto para uma discussão, outro texto. Neste interessa-me o pretexto para lhe contar uma história de maçonaria ou, pelo menos, um episódio em que o Grande Oriente Lusitano (GOL) está presente em cada simbologia e cada palavra.

Acontece todos os anos no cemitério do Alto de São João, na manhã de 5 de Outubro, data que celebra a Instauração da República e o fim da Monarquia. Em datas redondas organizam-se comemorações e a presença de pessoas no ritual aumenta um pouco. Nos outros anos, são menos, poucos mas bons, como sublinham quando alguém se queixa. Na maior parte, velhas e velhos maçons, gente que protagonizou a História e que, de ano para ano, se vai reduzindo. Ninguém ainda encontrou um segredo alquímico para que a morte não seja sempre a que mais ordena.
O ritual é simples. Paragem no mausoléu de Cândido dos Reis e Miguel Bombarda, coroa de flores junto ao túmulo de Machado Santos, homenagem no monumento aos Heróis da República, palavras memoriais e hino na estátua de António José de Almeida.

Uma breve história, para ir onde quero ir… 
A maçonaria, nomeadamente o GOL, foi a grande protagonista no 5 de Outubro. Vários maçons, revoltados com a monarquia e a ditadura de João Franco, colocaram a sua vida em risco em nome das ideias de Igualdade e de Liberdade. Miguel Bombarda, Cândido dos Reis e Machado Santos, como Afonso Costa ou Bernardino Machado, eram todos do GOL. Quase dois terços dos ministros do primeiro governo republicano eram maçons. Uma influência que não parou de crescer até ao Estado Novo e à ascensão de Salazar. 

Não deixa de ser um paradoxo. Saber que existem tantos monárquicos que são maçons. E saber que a maçonaria abriu a sua porta a pessoas que não imagino que, algum dia, possam, num 5 de Outubro deste mundo ou de outro, prestar tributo àqueles homens ou a outros como Aquilino Ribeiro e Manuel Buíça, artífices ideológicos e materiais do regicídio de 1908. Talvez seja por isso, pelo não respeito das suas identidades históricas, que as instituições estão em crescente decadência. E é por isso que gosto, cada vez mais, dos que defendem até ao fim as suas raízes, quer sejam monárquicos, maçons, numerários do Opus Dei, comunistas ou liberais. É abominável o meio-termo, abominável e destrutivo de convicções que, hoje por hoje, têm tanta popularidade como um espectáculo de Paco Bandeira dirigido a mulheres vítimas de violência doméstica.

Numa das últimas comemorações, manhã enevoada de Outubro de 2013, estiveram poucos, os habituais. E, como sempre, esteve Elísio Summavielle, ex-secretário de Estado da Cultura e um dos portugueses que mais sabem de património histórico, um dos homens menos de meias-tintas que conheço. No alto dos seus quase 60 anos, é visto por Edmundo Pedro e por outros camaradas e ‘irmãos’ como o jovem do grupo, o rapaz que, num certo sentido, continua a acompanhar o seu pai e avô ao Alto de São João quando, na década de 1960, atravessava a rua com flores que colocava junto à estátua de António José de Almeida. Uma estátua cercada de carros pretos da PIDE que não se atreviam a prender a criança das flores. Dentro do carro, o pai de Elísio gritava sempre um ‘Viva a República!’ com quem consigo estivesse. Era assim.

Numa das últimas celebrações, contava-lhe, no mausoléu de Miguel Bombarda, o momento foi especial para Elísio. Entre as pouco mais de 60 pessoas estavam Eugénio de Oliveira, António Reis, José Silva Graça, Edmundo Pedro, Maria Helena Correia e Luís Vaz que, para surpresa do ‘jovem’ mestre Elísio, o intimou a dizer as palavras que se impunham. A voz pareceu-lhe secar na garganta. Viu a sua vida em fundo, os hinos que cantou em frente a António José de Almeida, as conversas que ouviu em família, tudo o que o fizera chegar ali. E falou sobre o que os unia.

Não sou de nenhuma instituição, apenas a humana. Acredito na vida. No combate pela igualdade. Na memória. Nos pequenos gestos que são grandes. Porque a maioria de nós não será lembrada. Não teremos festas de homenagem, nomes de rua ou notícias nos jornais. Seremos poeira e, quando muito, estaremos no coração de uns quantos. Não mais do que uma ou duas gerações, se tanto.

Mesmo nos que serão pasto de memória, nos cuja morte será noticiada e cujo nome valorizado em tabuletas municipais, mesmo os mais conhecidos, ao fim das mesmas uma ou duas gerações, morrerão no que têm de verdadeiramente humano. Na forma como amaram, na forma como olhavam na intimidade, na forma como eram maldosos ou altruístas. Nas tabuletas ficará apenas um nome, não o que realmente foram. O fio que nos faz ser únicos perde-se quando entramos no comboio fantasma. Não acredito que seja o fim. Na verdade, acredito que existe uma rua que me pertence, uma rua iluminada onde se vende algodão doce. E onde pessoas passam a vez a outras. Que passam o testemunho e partem para outras paragens com a consciência um pouco mais tranquila.