Ousadias Latinas

Quantos de nós saberão que grande parte dos pensadores contemporâneos mais relevantes vêm da América do Sul? Quantos de nós conhecerão a “extraordinária” produção teórica e artística que chega daquela região? Se no ano passado António Pinto Ribeiro, curador da Gulbenkian para o programa Próximo Futuro, alertava para o facto de África ser um continente…

“A nossa relação com a América Latina é o Brasil. Pensamos nos sul-americanos como brasileiros ou tropicalistas e o resto, os países de língua castelhana. Mas nesses também há diferenças radicais em termos de regimes políticos, sociais e culturais. O que se passa na Bolívia pouco tem a ver com o que se passa com os países que estão do lado de lá da cordilheira do Andes, como o Chile ou a Colômbia”, comenta Pinto Ribeiro. A Festa da Literatura e do Pensamento da América Latina – com quatro debates agendados sobre Arte (sexta-feira, às 19h), Ciência Política e Poesia (sábado às 11h30 e 18h30 respectivamente) e Literatura (no domingo, às 15h) – é, então, um convite para se conhecer essa diversidade e ousadia no acto de criação. “O facto de serem países relativamente novos – a maior parte deles tem 200 anos – e o facto de a relação com os cânones não ser dogmática, faz com que se atrevam. E esse 'atrever-se a' permite produzir algo de novo”, comenta. 

Além da Festa da Literatura e do Pensamento – concentrada no 'Totem', pavilhão concebido por Tiago Rebelo de Andrade e Diogo Ramalho, do ateliê Subvert, para o Jardim Gulbenkian para fantasiar a América do Sul -, o Próximo Futuro apresenta a exposição 'Artistas Comprometidos? Talvez', com trabalhos de 21 artistas contemporâneos brasileiros, mexicanos, argentinos, colombianos, guatemaltecos, mas também sul-africanos, moçambicanos, marroquinos, portugueses, franceses e austríacos. Escolhidos pessoalmente por António Pinto Ribeiro, o pressuposto da mostra “foi trabalhar com artistas que têm uma atitude de comprometimento”: “Uns trabalham sobre a ideia do que é a escultura hoje, outros sobre a ideia 'ainda é possível haver beleza na arte?', outros ainda de uma forma mais activista”. 

O moçambicano Celestino Mudaulane e o mexicano Demián Flores são dois dos dez artistas que produziram obras inéditas para a exposição e, a par disso, a concretização das mesmas aconteceu durante esta semana na própria Fundação Calouste Gulbenkian. Os murais Mundo de Contrastes, de Mudaulane, e Império, de Flores, são duas críticas ao mundo actual em que vivemos. 

Enquanto Mundo de Contrastes, explica Mudaulane ao SOL, aborda “a hegemonia de algumas potências mundiais e o empobrecimento de África, tendo o continente tantos recursos minerais”, Império, comenta Flores, “fala das políticas imperialistas e de como elas prejudicam cada vez mais a humanidade”. 

Influenciado pelo movimento muralista que ganhou destaque com artistas como Diego Rivera após a revolução mexicana de 1910, Flores usa a águia como “metáfora simbólica entre passado e presente”. “A águia surge aqui com um significado de império a nível mundial e de como quer levar as utopias e memória de todos os humanos”, comenta o artista mexicano.
 
Cumbia na garagem 

Cinema e música são as outras áreas contempladas no programa deste fim-de-semana. 'Real Combo Lisbonense apresenta Carmen Miranda' e 'Baile na Garagem', ontem à noite na garagem da Fundação, foram as propostas musicais. La Flama Blanca, pseudónimo de Pedro Azevedo, foi o responsável pela noite de sexta-feira, trazendo para a Gulbenkian o espírito de Baile Tropicante, a residência mensal que tem no MusicBox, em Lisboa, onde toca cumbia psicadélica peruana dos anos 70, clássica colombiana dos anos 50 e 70, argentina contemporânea e demais ramificações. 

O cinema está representado com a estreia de Yvone Kane, filme de Margarida Cardoso, realizado em Moçambique, que conta com interpretações, entre outros, de Irene Ravache, Beatriz Batarda e Gonçalo Waddington. A longa-metragem será projectada domingo, às 22h, no Anfiteatro ao Ar Livre.

Já as propostas de teatro e dança ficam reservadas para Setembro, quando o Próximo Futuro regressar à Gulbenkian, na primeira quinzena desse mês. “Este ano optámos por este formato em duas fases porque há muita oferta cultural em Julho. Não que isso nos tenha prejudicado, bem pelo contrário, no ano passado duplicámos o número de visitantes, mas porque nos parece demais haver seis festivais no mesmo mês”, explica Pinto Ribeiro. 

alexandra.ho@sol.pt