Negócio familiar

É muito raro seguir programas de televisão específicos. A internet matou um bocado essa espera religiosa pelo novo episódio.

No outro dia apanhei mais um episódio de uma coisa chamada Kitchen Nightmares, que fico sempre a ver. Neste formato, o chef Gordon Ramsay é uma espécie de ASAE desejada pelos proprietários dos restaurantes: num par de dias dá-lhes uma tareia incrível, desmonta o restaurante, a ementa e as relações interpessoais entre o proprietário e os seus empregados. Detecta todos os problemas e resolve-os em três ou quatro dias. Através de um marketing super eficaz, o restaurante visado no programa enche-se para a reabertura e é potencialmente um enorme sucesso. Gordon Ramsay providencia alguma ajuda na noite da reabertura e terminado o serviço despede-se e sai porta fora, para um novo desafio. Das disputas familiares mais complexas a problemas de autoconfiança, recalcamentos, stress pós-traumático e má gestão, Ramsay resolve quase tudo. É um guru ao melhor estilo norte-americano.

Diria que não temos disto cá.

O programa que me deteve no outro dia era sobre um negócio familiar que já vira melhores dias, onde reinava o caos e o descontrolo, uma dívida absurda, um herdeiro à beira de um ataque de nervos e uma cozinha com todo o tipo de atrocidades capazes de alimentar mitos urbanos como aqueles dos restaurantes que cozinham cães, gatos e outros animais domésticos.

Quando me pedem uma biografia costumo sempre dizer que me mantenho fiel à tradição norte-americana e que sou actriz e empregada de mesa, mas que já fui descoberta, precisamente nesse ambiente. Afirmo isto porque é a verdade. Embora já não sirva à mesa há muito tempo, sei perfeitamente o que é ser empregada de mesa num negócio familiar.

E garanto que não é nada fácil.

Quase todas as profissões que implicam um convívio intenso e demasiado humano com outros seres humanos são extenuantes. Cansam corpo e mente. Tal como no teatro, num restaurante estas relações assentam na repetição eterna de rotinas que variam apenas consoante uma outra variável, que é o público. Haja muito, haja pouco, é sempre preciso estar a postos. Cortaste o dedo? Azarinho, the show must go on! Tem de estar sempre tudo perfeito e a energia terá de ser sempre tão contagiante quanto possível para que o público queira voltar e dizer bem e não parar nunca de recomendar.

Não é nada fácil (nem para o Gordon Ramsay) a gestão de nenhum tipo de relação viciada com uma variável. Foi isso que me despoletou a vontade de escrever sobre restaurantes: a dificuldade que é a gestão harmoniosa de uma equipa de trabalho cujo objectivo é a execução da mesma série de movimentos até que tudo se torne orgânico e perfeito, para uma série de actuações inócuas, ad infinitum. Tal como num espectáculo, num restaurante, a actuação só é genial quando ninguém nota que todo o processo é ficcional.

Por tudo isto, acho que um restaurante e um palco partilham muitos elementos e grande parte da ideologia relacional e performativa, daí ficar presa a este programa do Gordon Ramsay com tanta frequência. 
É óbvio para mim, hoje, que ter um restaurante pode ser um pesadelo, porque envolve relações estreitas com quatro das coisas mais voláteis do mundo: seres humanos, bens de consumo perecíveis, serviços e apetites.

Porque nem toda a gente lida bem com o facto de ser filho de dono de restaurante, é importante que no negócio familiar, seja ele qual for, exista espaço para a criação e manutenção de uma persona que pode crescer e desenvolver-se para lá dos limites do negócio. Tenho a sorte e a felicidade de ter adorado todo o tempo que passei no restaurante dos meus pais, onde o que fazia de mim uma boa profissional era a autonomia e a liberdade que eles me davam para encarar a aparente rotina. Esse ensinamento ficou para a vida. E quando hoje vejo as más relações que os concorrentes do Kitchen Nightmares têm com os seus negócios, penso sempre em como um restaurante pode ser fatal para uma estrutura familiar.

Em tempos de crise, e com o turismo a crescer a olhos vistos no nosso país, é muito importante manter a coesão familiar em dias de grande aperto, em dias de aperto moderado e em dias de folga. Porque a família será sempre família, e os restaurantes só valem a pena se fizerem parte das nossas memórias mais ternas. 

joanabarrios.com