Há filhos e filhos

O fenómeno do bullying já existia nas escolas portuguesas antes do 25 de Abril, embora a palavra ainda não tivesse sido importada dos Estados Unidos e a ninguém ocorresse que, entre os direitos das crianças, se pudesse incluir o de não ser torturada. 

Lembro-me do sofrimento de uma menina que os colegas mantinham em apartheid e a quem chamavam «bastarda», porque, embora o pai a tivesse perfilhado, era identificada como «filha ilegítima», isto é, nascida fora do casamento. 

As leis da democracia acabaram com os filhos ilegítimos – e, no entanto, quarenta anos depois, mais de 200 mil portugueses continuam definidos como «filhos de pai incógnito». 

Como pode isto acontecer se a paternidade biológica é objecto de investigação obrigatória e se há testes científicos para a determinar? 

O direito de cada criança a conhecer a sua identidade genética continua a ser negado. 
O entendimento ideológico prevalecente nos nossos dias é o de que, como supostamente não há discriminação em função da origem social ou familiar, a genética não interessa, antes pelo contrário: é um elemento arcaico e ‘racista’.

Falar de herança genética é tabu. 

Claro que quem assim pensa nunca passou pela angústia da incógnita: uma incógnita que, além dos fantasmas afectivos que a ideologia não afasta, levanta diversas questões bem pragmáticas de saúde. 
 
A capa da edição do passado dia 19 da revista Visão era dedicada a uma extensa reportagem, assinada por J. Plácido Júnior, sobre a odisseia judicial de uma mulher em busca do reconhecimento da sua filiação paterna. 

O mais extraordinário desta história, que lembra uma ficção camiliana do século XIX, é que tenha percorrido a via sacra judicial sem que o homem que a mãe e a filha indicavam como pai tivesse sido obrigado a realizar o teste de paternidade.

E tomando sempre por cientificamente válido o testemunho moral dos amigos do dito cavalheiro – que, segundo afirma a reportagem, teriam ido a tribunal «aclarar» que a mãe mantivera relações sexuais com vários outros homens. 

Ainda segundo a reportagem, mesmo depois de o Supremo Tribunal de Justiça ter conseguido que se realizasse o teste (e de o resultado ter sido positivo), o julgamento deverá repetir-se do início – estando de momento adiado sine die. A reportagem afirma ainda que há em Portugal 3,5 milhões de processos em estado de pousio. 

A serem verdadeiros todos os pormenores desta saga sem fim à vista, não espanta que haja no nosso país 200 mil pessoas sem paternidade estabelecida. 

O que não condiz com a fé inabalável nas superiores qualidades da família biológica a que assistimos no quotidiano português, nem com a tradição patriarcal ainda presente, por exemplo, nos documentos de identidade, nem com a prioridade que a legislação atribui ao «superior interesse da criança» sobre as guerras entre adultos. 

«Quando lhes digo que nunca desistirei de saber quem é o meu pai, os meus amigos dizem-me que tenho que ir ao psiquiatra curar esta obsessão», desabafava há tempos um homem de 40 anos. 

Os direitos que nos sonegam tendem a tornar-se obsessivos, é um facto. 

As questões identitárias, tão culturais e contemporâneas, parecem só oferecer fascínio na moldura das artes e na ousadia abstracta das reflexões cívicas ou filosóficas. No concreto são uma maçada; cheiram a sangue e a essa insignificância velha e desprovida de glamour que é a vida de cada um. 

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