Francisco Moita Flores: ‘Todos somos capazes de matar’

Na primeira redacção escolar escreveu que queria ser escritor e detective. E assim foi. Depois de anos dedicados à Polícia Judiciária – onde fez amigos entre os criminosos -, foi Presidente da Câmara de Santarém e descobriu que a política pode ser mais agressiva do que a polícia. Nunca deixou de escrever para televisão, teatro,…

Como nasce este Segredos de Amor e de Sangue, o seu mais recente livro?

Este livro começou há muitos anos, estava eu na Polícia Judiciária (PJ) e vi a cabeça do Diogo Alves no Museu de Antropologia do Instituto de Medicina Legal. Havia o mito do Diogo Alves, que atirava as pessoas do Aqueduto. Já tinha escrito um filme para um concurso na RTP, mas nunca foi produzido e eu fiquei sempre com o Diogo Alves empastelado. Até porque é uma época pouco conhecida da História, mas de grande turbulência. Estamos no fim da primeira guerra civil, ainda não começou a segunda, mas está a estoirar. E ele é o penúltimo condenado à morte. O filme só fala dos últimos dois dias de Diogo Alves. No livro conto a história, mas faço-o através de um taberneiro de Alfama, que aos 30 anos decide aprender a ler e escrever.

Mas esta é também uma história de amor.

É a história de amor dele com a Isabel. Interessou-me discutir naquele tempo uma coisa que se discute hoje. Naquela altura matavam-se mulheres a eito. Como hoje ainda se matam mulheres a eito no decorrer da violência doméstica. Só este fim-de-semana morreram três. Estou muito comprometido nesse combate e quis, através daquele homem que vai descobrindo as letras, meditar sobre os direitos da mulher.

Não evoluímos assim tanto?

O combate da violência doméstica teve alguma evolução no que diz respeito à repressão criminal, mas o problema é que quando se chega aí já houve muitos caminhos de sofrimento. Um estudo da Universidade Nova mostra que as mulheres, na sua maioria, só ao fim de 13 anos de espancamentos chegam às autoridades. Vi demasiadas mulheres assassinadas para ficar indiferente e isso tornou-se uma das minhas frentes de combate. No ano passado foram assassinadas 40 mulheres. Este ano já vamos com 21 ou 22. Não sairemos nunca da bancarrota enquanto não sairmos do estado de iliteracia em que vivemos. A escola é o cerne do nosso magistério enquanto cidadãos. Temos de produzir cidadãos justos e com sustentação ética.

Tem consciência de que, quando se fala de si, o escritor vem sempre em último lugar?

Senti sempre essa resistência: o Fernando Namora é médico, o Lobo Antunes é médico, o Dacosta era jornalista, o Miguel Sousa Tavares também. Os nossos escritores têm uma profissão associada a uma dimensão que reconhecemos como diferenciada. E eu era polícia. Muitas vezes ouvi dizer 'a novela do polícia', 'o livro do polícia'… Sei que era um anátema pejorativo: eu não fazia parte do clube. De repente, isto estava mal frequentado porque os intelectuais não tinham nada a ver com a Polícia. Mas eu escrevi 22 séries para televisão, 4 filmes, 5 peças de teatro, 4 novelas, tenho 15 romances publicados. Sempre com um trabalho de rigor porque a Polícia me ensinou o rigor. Com o tempo, porque houve trabalhos com grande sucesso, como O Processo dos Távoras, a Ferreirinha, o Ballet Rose, o Alves dos Reis, o Quando os Lobos Uivam, e o Capitão Roby, começou a haver alguma tolerância para com 'o polícia'. Nunca reneguei as minhas memórias. Não estou disponível para ser um peralta.

Escrever foi sempre um sonho de criança? Logo na sua primeira redacção de escola disse que queria ser escritor e detective…

Vivi sempre fascinado pelos livros. A minha infância é um tempo ruim, é o tempo do arranque das guerras coloniais e do medo da mobilização das tropas. Foi nessa altura que descobri os livros, que ia buscar à biblioteca itinerante da Gulbenkian porque o meu pai era pobre. Ao mesmo tempo, sabia que o meu pai tinha livros proibidos e isso foi algo que me marcou profundamente. Não podia mexer nos livros que estavam por detrás do guarda-fatos. O meu pai chegou a bater-me por eu abrir um desses livros, o Quando Os Lobos Uivam, que vim a adaptar 40 anos depois. Não conseguia perceber por que é que o livro era perigoso.

E perguntou ao seu pai?

Numa primeira fase, não. Mas o meu pai à noite sintonizava umas rádios estranhas, que falavam contra a guerra e contra o regime. Foi aí que comecei a perceber que havia um outro país, que o meu pai ouvia sozinho e baixinho. Era um país proibido. E é aí que descubro por que é que as palavras são perigosas. 

O que fazia o seu pai?

Era serralheiro e mecânico numa quinta de alfaias agrícolas. Mas lia muito. Era, e é, um homem paradoxal. Vivia fascinado com os livros. Julgo que isto se deveu ao facto de ter sido um participante activo na campanha do Norton de Matos e do Humberto Delgado e  de ter muitos amigos na roda. Nunca foi comunista, mas era republicano, numa tradição mais laica e socialista. Aprendi com ele esse sentido das coisas. Mas a paixão pelos livros sai também do meu professor de português.

Como?

O meu professor, Manuel Marques da Cruz, é uma memória que nunca vou esquecer. Foi meu professor até ao quinto ano do liceu. Era um homem que nos empolgava quando lia Os Lusíadas que, para nós, era um livro assustador. Explicado por ele era fabuloso. De tal maneira que Camões continua a ser das grandes paixões da minha vida.

E o que recorda da sua mãe?

A minha mãe já cá não está. Já morreu há dez anos, mas fica uma saudade que nunca mais desaparece. Com a minha mãe era o outro mundo, o mundo dos afectos, das cumplicidades, dos sonhos, dos silêncios, dos segredos. A minha mãe era muito doce, mas também muito medrosa das coisas que o meu pai ouvia e fazia.
Por um lado, sentia essa paixão pelos livros, mas ao mesmo tempo estava a crescer em Moura, uma vila alentejana onde imagino que pudesse brincar livremente.
Tinha o maior recreio do mundo, não tinha limites. Podíamos tomar banho no rio, jogar à bola quando quiséssemos… Mas ainda houve outra coisa que veio a ser importante na minha vida: a televisão. A primeira televisão foi comprada quando eu tinha 11 anos, em 1964.

O que gostava de ver?

Sobretudo filmes e séries. É a televisão que me faz sonhar ser detective, depois de ver o programa do Varatojo e os filmes policiais. Mas na altura tinha medo porque a Polícia de que se falava era a PIDE. Queria ser um detective à americana. E é a televisão que depois me empurra para o cinema. Ainda hoje vejo com emoção o Cinema Paradiso, que me lembra o cinema da minha terra. Sabia de cor as falas do Casablanca e do E Tudo o Vento Levou. O juramento que Vivian Leigh faz sobre Tara, em que diz que nunca mais terá fome, marcou-me de forma extraordinária.

Quando começa efectivamente a escrever?

Nessa altura começo a escrever colaborações para jornais. Quando sou finalista, já em Beja, tínhamos uma récita para arranjar dinheiro para a viagem e fui eu que escrevi tudo. Nunca mais deixei de escrever. Fui dar aulas e escrevia. Fui para a Polícia e escrevia. Quando me convidaram para a política, a primeira pergunta que fiz foi se podia continuar a escrever. Digo hoje o que já dizia há 30 anos: se não puder escrever não quero estar vivo.

Isso parece um pouco radical.

Há 30 anos tive um AVC que me apanhou o lado direito do corpo. Estive em coma vários dias. Quando acordei e tomei consciência do meu estado, andei à procura da janela do hospital pela qual me podia defenestrar porque achava que não ia poder escrever mais. Foi um médico, o Dr. Coimbra, que me ensinou que era possível recuperar. Recuperei com força de vontade. No Garcia da Orta, o acesso à sala da administração tem cinco degraus, e eu fugia do meu quarto para ir para esses cinco degraus passar a noite a fazer força com a mão e a subir e descer. Além disso, levantava-me e ia abrir e fechar o manípulo da porta do meu quarto só para ganhar força na mão. Se não puder escrever não quero estar vivo, não me interessa. É aí que está o meu mundo e é aí que quero acabar os meus dias. 

Aos 15 anos foi sozinho para Beja, para estudar?

Fui morar para uma República de rapazes da minha idade. Passar de uma vila para uma cidade foi importante. Lembro-me da euforia da descoberta. E foram os anos da iniciação na política, porque apanho as eleições de 69. Foi o ano em que começámos a cantar baladas, em que o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira e o Fausto aparecem. E o Bob Dylan e a Joan Baez. Ganho aí um outro olhar sobre o mundo. Foi também a primeira vez que fui ao estrangeiro, a Espanha e a França, e depois a Marrocos. Lembro-me de andar por Casablanca e sentir-me muito emocionado por estar onde esteve a Garbo e o Bogart.

Foi nessa altura que começou a trabalhar?

Sim. Comecei por tirar o ponto numa oficina: assinalava a hora de entrada e saída de cada trabalhador. E fazia uns favorzitos a quem chegava atrasado. Depois passei por uma coisa de pneus, durante dois anos. Fui trabalhar por necessidade, os meus pais não tinham dinheiro. Nunca mais deixei de trabalhar e estudar.
Como é que o jovem que queria ser escritor e detective vai para Biologia?
Os meus pais queriam que fosse para medicina, mas eu não gostava de hospitais. Fui para Biologia para fazer investigação científica, mas os olhos traíram-me. Acabei a ir dar aulas para ter dinheiro. Aos 21 anos, casei-me e vim para Lisboa estudar História.

Como acaba na PJ?

É a ressaca do 25 de Abril que faz de mim polícia. Estávamos em 76 e tinham chegado os medos da droga. Aparecia um taco de haxixe no interior de uma escola e era o terror. Na altura estava a dar aulas na Azambuja e apareceu, numa casa de banho, um saco cheio de folhas prensadas que pareciam haxixe. Os professores ficaram em pânico. Sugeri que se levasse aquilo à PJ em Lisboa para sabermos o que era – posso dizer desde já que era louro prensado que é algo que ainda hoje se usa para vigarizar quem quer comprar haxixe. Fui à PJ, na Gomes Freire, e quando estou a entrar está a sair o meu cunhado que me diz que se foi inscrever para o curso da PJ porque se ganhava bem. Percebi que ficaria a ganhar mais 800 escudos e disse que também me queria inscrever. Quando chegou a altura das provas o meu cunhado diz-me que afinal não vai. Mas eu fui na mesma. Eram três mil candidatos para 60 lugares. Na primeira prova, de cultura geral, ficaram para trás dois mil e tal e percebi que era possível.

E acabou mesmo por ser escolhido. 

Sim. Fiz o curso e acabei em primeiro lugar. Na altura havia a gentileza da direcção da Polícia de perguntar ao primeiro classificado para onde queria ir trabalhar. Havia o crime económico a que chamavam as brigadas da Venezuela, havia as impressões digitais, os homicídios e havia os roubos e assaltos à mão armada que eram conhecidos como o Tarrafal porque se trabalhava dia e noite e eram de alto risco. Escolhi o Tarrafal. Pensaram que era maluco.

Nunca teve dúvidas de deixar a carreira de docente?

Não. Foi dos dias de maior alegria da minha vida o dia em que entrei naquela casa. Passado uma semana foi um dos dias de maior medo.

Porquê?

No final de 70, Lisboa estava cheia de bairros de lata. Eu era um miserável estagiário e dois colegas dizem-me para ir com eles à Curraleira prender dois tipos que tinham roubado umas televisões. Era a minha primeira captura. No carro eles iam à frente a falar de futebol, com a maior naturalidade. E eu atrás, aflito, a pensar se tinha a pistola, se tinha bala na câmara… Chegamos à Curraleira e dizem-me para ir para as traseiras para se algum deles fugisse. Quando dei por mim estava perdido na Curraleira, de fato e gravata. Tudo a olhar para mim e a perceber que eu era polícia e que estava ali sozinho. Achei que ia morrer ali. Ao fim de 20 e tal minutos começo a ouvir a buzina de um carro. Fui seguindo a buzina até chegar ao pé deles, envergonhadíssimo. Já estavam a fumar, com os outros no carro. Senti-me humilhado por me ter perdido e me ter borrado de medo. Depois desse dia corri a pé todos os bairros de Lisboa: Musgueira Norte e Sul, Cruz Vermelha, Casal Ventoso, Curraleira… E nunca mais fui trabalhar de fato e gravata.

Diz que teve de aprender muito depressa a não ligar aos insultos.

Sim. No dia em que cheguei o meu chefe disse-me logo: 'A partir de hoje não tens mãe'. Isto porque, quando entramos em certas zonas, insultam tudo e todos para nos desconcentrarem. Eramos insultados, apedrejados, enganados… Lembro-me no bairro da Boavista de um gajo que esteve três horas dentro de uma arca frigorífica. Procurámos tudo e não o encontrámos. Ele tinha assassinado um guarda-florestal e tínhamos um informador que nos assegurava que ele estava ali. Quando, uns meses mais tarde, o prendemos por acaso, na sequência de um acidente, perguntámos onde é que ele se tinha metido e ele contou que tinha estado na arca e que depois tinham estado até às 4h a tentar aquecê-lo.

É nessa altura que se estreia na televisão, nos Casos de Polícia, na SIC?

Já tinha escrito para televisão, mas dar a cara foi a primeira vez. Foi um programa que revolucionou a relação entre polícias, população e jornalistas. Lembro-me que era o Emídio Rangel que estava à frente da SIC e ele disse que ia fazer o programa e que nos estava a convidar. Ou íamos ou não. Decidimos que irmos era preferível. Teve um impacto muito importante, não só na relação da Polícia.

E soube-lhe bem dar a cara?

Ao princípio, achei graça. Mas depois cheguei a um estado de saturação que pedi para sair. Ao fim de 20 meses a fazer um programa daqueles cai-nos em cima tudo o que é acusações de violação de segredo de justiça, invejas, milhões de pessoas a pedirem conselhos e ajuda. Já não conseguia aguentar. A minha vida pessoal estava a sofrer. Falava em nome da PJ e tinha de me autocensurar. Não podia ser um livre-pensador. Ainda há pouco tempo tive um programa de debate com o Marinho e Pinto e o Rui Rangel em que me diverti bastante. Já não sinto a camisa-de-forças.

Há um perfil da criminalidade portuguesa?

Há vários domínios. Neste momento aquela que deveria preocupar mais as autoridades é a violência doméstica.
No entanto, se fizer esta pergunta aos portugueses, eles dirão que é a corrupção.
Esses crimes económico-financeiros precisam de ser investigados porque provocam grandes danos – basta lembrarmo-nos do caso BPN. Mas, para mim, a outra frente é a violência doméstica. E ainda o tráfico de droga e branqueamento de capitais que precisa que se mantenha o controlo sempre muito apertado. Estamos num ponto estratégico para os grandes negócios da droga. Falo de quantidades superiores ao PIB português.

É diferente o crime no feminino e no masculino?

Completamente. Temos neste momento 14 mil presos – o maior recorde de sempre – e nem devem chegar a duas mil mulheres. Logo este dado mostra que a criminalidade feminina está muito distante da masculina. Além disso, a mulher é mais racional nos seus crimes, amadurece a ideia. Lembro-me de uma mulher que prendi porque matou o marido. Numa tarde, ele estava a entrar em casa e ela dá-lhe uma paulada tal que lhe parte o osso que vulgarmente chamamos 'fontes'. Ele caiu redondo. Quando chegámos os pés ainda estavam fora de casa. Não teve hipótese, o que dá ideia de um crime de uma violência brutal. Quando lhe perguntei porquê tanta violência, estávamos três homens na sala e ela abriu a camisa, tirou o soutien e os mamilos estavam queimados com cigarros e havia cicatrizes de queimaduras e facadas por todo o tronco. Sofreu durante 20 anos. Naquele dia decidiu que ele não voltava a fazer aquilo. 

É impossível não sentir alguma compreensão por uma pessoa nessa situação?

Já passaram muitos anos, já posso contar isto: quando vimos aquele espectáculo de degradação ensinámos à senhora o que ela devia fazer. Foi absolvida.

Há homicídios compreensíveis?

Não são compreensíveis. Uma vez prendi outra mulher que matou o marido. Disse que estava farta de levar pancada mas que não se podia divorciar porque era católica e tinha casado pela Igreja. Há sempre soluções para além do homicídio. Matar não é solução para nada. Agora, as pessoas ficam num tal estado de transtorno, de afunilamento de vidas, que julgam que o homicídio é a única forma de se libertarem.

Ficou com amigos criminosos?

Então não fiquei? Bastantes! Ainda hoje tenho amigos que foram assassinos. Todos somos capazes de matar. Vi pessoas que passaram uma vida pacífica, nunca mataram uma mosca e que, de um dia para o outro, mataram a família. E que se foram entregar transtornados porque nem perceberam porque fizeram o que fizeram. A ideia de que o mundo é preto e branco é falsa. Recebemos essa herança do Concílio de Trento, mas não é verdade. Somos tudo ao mesmo tempo. Por isso é um fascínio olhar para o ser humano.

Como é possível ser amigo de alguém que prendeu?

Estou a lembrar-me de dois. Um matou a mulher e a cunhada. Quando o prendi ele disse-me: 'Quando sair daqui mato-te'. Esteve quase 20 anos preso. Ao fim de 20 anos eu tinha um programa na televisão chamado Marginalidades, a produtora quis convidar um homicida e eu disse que o podia convidar a ele. Quando a produtora foi falar com ele, ele disse que vinha para me matar. Os meus colegas estavam assustados, mas ele lá veio e quando nos encontrámos, ele desatou a chorar e demos um grande abraço. A partir daí, pelo Natal trocamos sempre as boas festas.

As histórias dos tempos na Polícia continuam muito vivas em si?

Sobretudo os grandes dramas. Há uma coisa que aprendi na Polícia que não sabia que existia com tanta evidência na sociedade: o sofrimento. Descobri que a Polícia é a casa, por excelência, do sofrimento. É uma coisa terrível dizer a alguém que venha à morgue connosco porque pensamos que o seu filho está morto e precisa de ser reconhecido. Perdi a conta às pessoas que choraram no meu ombro. Não sei quantas vezes pedi a Deus para ter palavras para consolar aquelas mães e pais. Lembro-me de uma senhora que fomos informar que o filho tinha morrido com uma overdose e ela encostou-se à parede, suspirou de alívio, sem lágrimas, e agradeceu. Não percebi como uma mãe reagia assim à morte de um filho. Já de regresso à Polícia, depois de uma discussão, contaram-me que ela já tinha chorado todas as lágrimas, era um passado de violência. O sofrimento é uma coisa terrível e eu trouxe isso comigo.

Nesses traumas inclui-se ter perdido amigos?

Sim. Perdi alguns. Não me leve a mal, mas não quero falar sobre isso… São feridas que não se curam.
E sentiu-se no lugar de quase perder a vida? Ou, pelo contrário, de matar alguém?
Não quero mesmo falar sobre isso. Faz parte do nosso mundo de aflições, de perdas, de mágoas, de feridas profundas…

A proximidade de situações limite, faz com que se banalize a morte?

Quando morreu a minha mãe, já estava fora da Polícia e estava com um grupo a fazer uma exumação de um cemitério em Macedo de Cavaleiros – a mesma equipa que depois fez a trasladação do cemitério da Aldeia da Luz. Estávamos a levantar centenas de cadáveres. Era algo banal, já conhecíamos tudo o que havia sobre os mortos. De tal forma que dormíamos a sesta nos caixões novos onde depois púnhamos os cadáveres. Numa conversa com um dos elementos da equipa comentava que aquilo era tão banal para nós que quando morresse alguém teríamos de fingir. E recebo o telefonema que morreu a minha mãe. Lembro-me de vir por aí abaixo, de Macedo de Cavaleiros para Moura, e perceber que a relação psicoafectiva não tem nada a ver com a ciência. Porque a verdadeira morte não é a linha isoeléctrica do encefalograma nem a paragem cardíaca. A verdadeira morte é a ausência do abraço. É a ausência das palavras, dos beijos, da partilha. Essa é que é a verdadeira morte. É as pessoas já terem morrido e ainda ouvirmos os seus passos e o seu respirar…

E em relação à própria morte?

Essa espero-a com tranquilidade. Foi uma vida demasiado cheia, quando chegar a minha hora partirei com calma. Não me assusta a ideia de morrer. Mas ainda queria publicar mais um ou dois livros, ver a minha filha mais crescida.

A política revelou-se mais agressiva do que a Polícia?

Muito mais. Porque não é uma luta leal, é uma luta de interesses, de coscuvilhices, de intrigas, de traição, de alianças momentâneas – os amigos de hoje são os inimigos de amanhã, como estamos a assistir entre o Costa e o Seguro. Aquilo são os intestinos da política e é igual no PS, no PSD e no PP.

O que faz um homem chegar aos 52 anos e aceitar um desafio político como a presidência da câmara de Santarém?

Experimentar. E poder dizer que é possível fazer diferente e pensar nas pessoas e não estar só a pensar na preservação do poder. Há autarcas em Portugal que estiveram tanto tempo no poder como o Salazar. Esses homens não servem as populações, servem-se a si próprios. Quem se eterniza no poder não quer saber das pessoas, quer saber é do seu tacho.

O que guarda dessa experiência?

Memórias muito bonitas. Quando cheguei a Santarém a cidade tinha 60% do saneamento básico, hoje está acima da média europeia. Fiz não sei quantas escolas. E fiz a coisa mais bela que já fiz na minha vida que foi entrar numa escola onde vi meninos a terem aulas de sobretudos e luvas porque estava muito frio e pôr ar condicionado. São obras sem importância mas para mim foram as melhores.

Tendo essa experiência positiva porque não continuou?

Acho que um autarca não o deve ser mais do que oito ou dez anos. A partir daí, torna-se um cacique. Santarém acaba porque o PSD quer apresentar o novo candidato e quer que ele se afirme e por isso pede-me, com delicadeza, que eu saia, para o outro se afirmar. O outro que é um instrumento que vive só do partido, fora daquilo não tem currículo. Mas era para ele se afirmar…

Apesar desse final amargo, volta à política. Revelou-se um vício?

Tive convites para várias autarquias e de vários partidos. Numa primeira fase não estava muito entusiasmado, mas Oeiras era onde tinha o meu ateliê de escrita e tinha lá amigos. Fui e apresentei-me de coração aberto, mas sabia que estava a lutar contra uma das maiores teias de interesses da região de Lisboa. E acabou.
Na campanha disse que queria continuar o trabalho de Isaltino Morais e que o considerava um bom autarca…
Há duas dimensões do Isaltino. Conheço-o há muitos anos e a sua visão estratégica como autarca é de excepção. Oeiras com ele é diferente do que era antes de ele chegar. Teve a capacidade de atrair empresas, pessoas, de pôr o concelho a produzir riqueza. Essa dimensão é reconhecida por toda a gente. A zona censurável do Isaltino é outra e não tem nada a ver com esta visão estratégica. O que foi objecto de censura do tribunal tem a ver com procedimentos ilícitos.

Mas que permitem questionar a seriedade do homem e portanto do autarca?

Sim, como hoje creio que se questiona a seriedade de muitos homens que estão na vida pública. Até em relação ao Presidente da República acho que não ficaram explicadas umas acções. Tinha de olhar para ele naquilo que me interessava que era a sua vida pública, não a privada. E a vida pública dele tem este mérito. Não tem nada a ver com o tipo que o substituiu que é um tipo sem visão nem cultura, é mais um rapazito.

O que está a dizer é que consegue destrinçar aquilo que foi o trabalho do autarca daquilo que foram as suas actividades ilícitas?

Ele foi condenado por crimes ligados à vida pessoal não por crimes ligados à autarquia.

Mas a suspeita não fere de morte a seriedade do político?

Fere, mas ele não é caso único. Lembro-me, com todo o respeito, de uma senhora que saiu da apresentação ao juiz e aproveitou a presença das pessoas, das televisões e dos jornais para se candidatar à câmara. Isto passa-se em todos os partidos. E a culpa é dos eleitores que vivem com isto.

Imagina-se a voltar à política?

Não. Esse capítulo está encerrado.

Esteve na política e Polícia. Nos últimos tempos temos assistido a um número alargado de manifestações de forças policiais. Como vê esses confrontos entre duas forças às quais, de alguma forma, já pertenceu?

Com a forma como as polícias têm sido tratadas – sobretudo ao nível das condições de trabalho e da mobilização de carreiras, daquilo que é a expectativa de carreira prometida a alguém – é espantoso como ainda não entrou em insurreição geral. Têm dado mostras de um profissionalismo que vai para além da forma mesquinha de desprezo com que o poder político os tem tratado. Os próprios sindicatos não contam tudo. Mas eu sei. Sei, por exemplo, de investigações que não são feitas porque não há dinheiro para o combustível, que só se pode fazer investigações até determinado número de quilómetros, que têm de usar o seu telemóvel pessoal, que os computadores não funcionam… isto é inacreditável. Os comandantes estão numa posição híbrida: por um lado estão ali para defender a política criminal do Governo e são nomeados por confiança política, mas por outro lado vêm a aflição das suas tropas.

Qual pode ser o desfecho?

Um dia pode haver uma coisa mais séria. Estão a chegar a limites de exaustão completa.
Há quem defenda que a situação que o país vive só poderia sofrer uma volta profunda se houvesse essa insurreição das forças policiais.
Os polícias não são o povo, o povo é que tem de tomar essas posições. Mas devo dizer que acompanho o fenómeno de Polícia há 35 anos e nunca vi uma manifestação tão grande como a última, que inundou a Assembleia e chegava à casa da Amália, já a meio da rua de São Bento. Um em cada três polícias estava ali. E os outros estavam a trabalhar, contrariados e solidários. O Governo tem desvalorizado este descontentamento, mas se não houver mexidas, este ou o próximo Governo – porque este vai sair daqui a um ano -, vai ter um problema muito complicado. São milhares de homens enganados, com as vidas frustradas, a trabalharem em condições inacreditáveis. E isso não faz sentido fazer a pessoas que dão a vida pela sociedade. É um mundo de alto risco e não se pode tratar um polícia como um funcionário administrativo.

Disse que daqui a um ano este Governo sai. Não tem fé na reeleição deste Governo?

É muito difícil isso acontecer. Basta olhar para os números. O PSD e o CDS, quando ganharam, tiveram dois milhões e seiscentos mil votos. Neste momento têm 900 mil. Com Costa ou Seguro, há outros factores que estão a entrar nestas contas e que vão ter uma importância decisiva nas próximas eleições.

E quais são esses factores?

São os fenómenos tipo Marinho e Pinto e a emergência dos novos partidos. Um leque maior de partidos vai pulverizar os votos. Infelizmente temos uma esquerda estúpida, sempre desavinda. É próprio da esquerda andar sempre à estalada entre si. Protestam muito e fazem grandes fitas entre si e perde-se a confiança numa esquerda assim.

Foi eleito pelo PSD. Votará em Passos?

Fui sempre um independente e pago uma factura cara por isso. Mas vou morrer assim. Para já não estou a ver isso. Estou muito magoado com os contratos falidos, como foi o das reformas. Reformei-me com 42 anos de trabalho nos quais descontei sempre, arriscando a vida muitas vezes. Fiquei profundamente abalado com estes cortes. Não consigo perceber como se continua a dar prebendas aos que as tiveram sempre. Estou magoado com este tipo de política. E depois sabe-me mal isto da inconstitucionalidade dos orçamentos. Um Governo tem de perceber que numa sociedade desenvolvida isto não pode acontecer. O TC não é o inimigo, mas também não está ali para fazer fretes políticos. O TC está ali para proteger aquilo que é o nosso contrato social. 

A família acompanha o seu trabalho na escrita?

Não muito, porque o trabalho de escrita é muito solitário. E eu sou um homem tímido e um solitário. A escrita é um processo de solidão, da relação com as bibliotecas e com os meus silêncios. Às vezes a minha filha pergunta-me se estou zangado. Quando estou a discutir com as personagens ponho uma cara de guarda-republicano em frente à Assembleia da República e preciso de lhe explicar mil vezes que não estou zangado, estou a pensar. Às vezes posso estar dois ou três dias seguidos a escrever 15 horas por dia. Mas a família lê os meus livros. Tenho três filhos e o do meio, o Nuno, é o primeiro a ler e a dar opinião. É o meu maior crítico. E acompanham as séries. Eu não. Quando vai para o ar já vi aquilo tantas vezes que já não consigo ver mais.

Nem quando entra Filomena Gonçalves, a sua mulher?

Não. Mas já escrevi para ela, é uma excelente actriz, uma actriz de garra.

Ela nunca lhe faz pedidos especiais? Separam bem os dois trabalhos?

Completamente. Uma vez escrevi uma cena para uma série sobre a Guerra Civil de Espanha em que precisava de despir uma mulher porque havia uma violação feita por marroquinos. E esse papel calhava à personagem dela. Disse-lhe que ia escrever aquela cena, expliquei-lhe o contexto e ela aceitou. Quando tenho cenas de sexo, seja qual for a actriz, tenho a preocupação de falar com elas.

Mas é sempre diferente quando se está a escrever uma cena de sexo para a mulher com quem se partilha a vida há cerca de 15 anos…

Quem sabe como aquilo é feito, sabe que não há ali nada que possa perturbar do ponto de vista psicológico. Imagine, está em estúdio com um actor e precisam de se beijar, e ali à volta estão 30 pessoas. Não há ali qualquer química, é tudo encenado. Nada é real.

Apesar do amor pela escrita de que já falou, numa outra entrevista disse que, ainda assim, o que de melhor fez na vida, não foram livros, mas os seus filhos e netos.

São as minhas obras-primas. Aquilo que levo da minha vida como a melhor coisa que me aconteceu são os meus filhos e os meus netos. Vê-los crescer é o meu grande tesouro e a minha grande conquista. Tenho dois filhos e uma filha e dois netos e uma neta. Sou um pai e um avô muito orgulhoso. São o maior legado que vou deixar, como diz a Bíblia, em dia e hora que desconheço. 

raquel.carrilho@sol.pt