‘Pode fazer-se psicanálise em qualquer idade. Até em bebés’

Sempre inconformado e irreverente, António Coimbra de Matos continua a ter opiniões controversas. Defende que a psicanálise clássica pode tornar-se “uma pasmaceira” e que a não integração na sociedade é preferível à integração excessiva.

‘Pode fazer-se psicanálise em qualquer idade. Até em bebés’

A psicanálise para crianças tem pressupostos diferentes da psicanálise para adultos?

Tem técnicas um bocadinho diferentes, mas os princípios são os mesmos. Hoje em dia faz-se psicanálise em qualquer idade. Até em bebés.

Antes de aprenderem a falar?

Sim, sim. É um tratamento com a mãe e o bebé. Posso dar um exemplo. No início dos anos 60 tinha uma paciente no Júlio de Matos que estava lá internada como esquizofrénica e era visitada pelos pais e uma irmã. Uns anos mais tarde, recebi um telefonema desta irmã da minha paciente. 'Casei-me e tenho uma filha, e ela está com uns tiques. Acho que vai ficar esquizofrénica'. 'Que idade tem a criança?'. 'Seis meses'. Fiz uma terapia uma vez por semana com a mãe e a bebé, durante uns cinco meses. Deitava a miúda no chão e brincava com ela. Ela fazia aquilo com os dedos de vez em quando, mas a mãe foi compreendendo que era perfeitamente normal, a miúda evoluiu bem e a ansiedade passou.

Este congresso luso-brasileiro conta com a participação de uma sociedade de psicanálise brasileira. A psicanálise é uma disciplina com muita aceitação no Brasil?

Na Europa e nos Estados Unidos a psicanálise estendeu-se de uma forma um bocado excessiva e por isso estamos a fazer a crítica. Mas na América do Sul ainda há a ideia de que é uma espécie de panaceia. Na Argentina, então, os psicanalistas pululam… São quase tantos como os polícias [risos].

A sua palestra tem o título 'Estrangulamento da Alma'. Sobre o que vai falar?

Ainda não a escrevi, vou tomar umas notas amanhã, mas a ideia é a seguinte: a sociedade, a cultura, a educação, muitas vezes estrangulam o desenvolvimento, criando limites, pondo determinadas regras. E as pessoas, para serem saudáveis, têm de se desenvolver em liberdade. Há uma metáfora que eu costumo usar. Plantamos uma árvore, ela cresce em liberdade. Mas se a podarmos pode ficar com a forma de um pássaro ou de um vaso.

Com a forma que nós lhe damos e não com a que seria natural.

Pois. Muitas vezes também formatamos as crianças. Se calhar já reparou: as crianças de três, quatro, cinco anos são todas pintoras naturais. Depois começamos-lhes a dizer que se tem de fazer a casa, pôr a chaminé, pôr o fumo, portas ali, duas janelas acolá, uma estrada… às tantas pintam todas a mesma coisa. Perdem a liberdade e a criatividade. É importante sermos livres, independentes, espontâneos, curiosos, e não propriamente adaptarmo-nos a determinados figurinos.

Desde que isso não nos impeça de nos integrarmos.

Sim… Mas acho que há mais prejuízo na integração excessiva do que na não integração.

Que tipo de pessoa faz psicanálise hoje? São sobretudo estudantes de psicologia ou ainda há profissionais liberais, artistas, escritores…

Ainda existem. Mas isso mudou bastante. Nos anos 60, quando eu comecei, havia uma clientela de alta sociedade, de gente rica, com dinheiro, que achava bonito fazer psicanálise, estava na moda. Nos anos 70 começaram a aparecer os profissionais: psicólogos, sociólogos, médicos. Queriam ter uma experiência maior da relação humana. De momento, talvez esteja mais circunscrito àqueles que se querem dedicar à psicoterapia – psicólogos e psiquiatras.

Qual é a duração média de uma terapia?

Hoje em dia uma psicanálise anda à volta de quatro, cinco anos.

A frequência das sessões é uma das questões que o opõem à Sociedade Portuguesa de Psicanálise, da qual saiu em 2008 para fundar a Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, não é verdade?

A sociedade clássica mantém a ideia de que a psicanálise requer um mínimo de três, quatro, cinco sessões por semana. Em muitos casos isso não é necessário. Chega uma ou duas vezes desde que se faça sessões rentáveis. Na psicoterapia tradicional dizem 'Deixe correr a coisa, se não perceber hoje, percebe amanhã ou daqui a um ano'. As sessões tornam-se numa espécie de pasmaceira em que o analista não faz grande esforço e o analisando também não. No Brasil, um dia apanhei boleia de uma aluna e no caminho ela perguntou-me: 'Quantos anos de análise é que fez?'. Respondi 'cinco'. Ela achou pouco. 'Eu fiz 20 e ainda quero fazer mais'. Isso é uma tolaria. Ao fim de algum tempo as pessoas adquirem a capacidade de se questionarem a si próprias sem estarem dependentes do analista. O Woody Allen e outros assim é que fazem análises de 40 anos [risos]. 

josé.c.saraiva@sol.pt