Por alma de quem?

Da igreja espera-se consolação. Pelo menos isso. Nesta época em que a Máfia se diluiu e deixou de derramar sangue para se tornar o próprio sistema circulatório dos vários poderes, a religião deveria servir os perseguidos e abandonados, os desesperados e inconsoláveis. 

Deixei de ser católica no fim da adolescência porque nada do que via na Igreja me parecia ter qualquer relação com a novidade extraordinária da mensagem de Jesus Cristo, tal como a lia nessa obra de arte que são os Evangelhos. 

Além disso, incomodava-me a ideia de que só fossem boas as pessoas que se confessavam e comungavam. Não era isso que eu observava; a coincidência entre fé e bondade parecia-me – e parece-me até hoje – tão ocasional como a que existe entre a descrença e a bondade. 

Tenho visto pessoas praticantemente católicas praticarem actos que qualquer demónio aplaudiria; e pessoas que descrêem da existência de qualquer espécie de céu ou inferno atravessarem-se pelo seu semelhante com uma entrega luminosa. Aliás, que valor tem a bondade se resultar apenas do medo do castigo divino? 
 
Agora o Vaticano arranjou um líder que tenta sacudir o pó e a presunção hierárquica da Igreja Católica e fazem-se debates sobre a introdução de alguns modernismos na organização. 

À direita e à esquerda, as forças profanas da política saúdam esta ‘abertura’, fazendo contas às ovelhas que, num redil ampliado, poderão significar um acréscimo de votos, se souberem ir buscar os améns às mãos certas. 

O chamado ‘arco da governação’ vive em Portugal a mendigar a auréola da santidade. Na tal Constituição sempre em tribunal, está escrito que o país é laico. Mas também está lá escrito que todos temos direitos iguais, o que significa que há um fundo humorístico no texto fundamental. 
Não deixa de ser curioso que se discuta tanto o casamento dos padres e tão pouco a entronização das mulheres, mas deixo esses temas para os interessados: quem está no convento é que trata do que lá vai dentro.

Sucede que tenho frequentado uma sequência de missas por alma de defuntos. 
Mesmo os que desistiram da fé, ou daquela específica forma de fé, vão a esses rituais na esperança de encontrarem uma palavra que os ajude. Sei que não estou sozinha nesta esperança. O que se passa, porém, na esmagadora maioria das vezes, é que as missas por alma de alguém começam e acabam sem que o espírito daqueles a quem são dedicadas seja sequer aflorado.

Para começar, alistam-se demasiados mortos por missa: com sinistra frequência, o padre debita-lhes os nomes, às vezes com erros, como se enumerasse uma lista de supermercado. 

Depois dessa enunciação inicial, nunca mais ouviremos falar de cada um daqueles seres, que apenas surgirão em nova e despachada lista no meio de uma oração genérica sobre os males do mundo. Com sorte, a homilia abordará ao de leve o tema da dor e da morte. Com azar – é o que me tem acontecido – nem isso. 

No fim da missa choramos nos braços uns dos outros e vamos para outro lado qualquer lembrar o bem que recebemos daquela pessoa e o modo como ela continua a viver em nós. 

A Igreja funciona como ponto de encontro e não como princípio de consolação: parece, também ela, submetida às regras do famoso ‘empreendedorismo’ que nos empena e empobrece.