Vermeer: uma paixão não correspondida

No dia 13 de Setembro de 2001, no auge do sentimento de pânico gerado pelos ataques terroristas às Torres Gémeas de Nova Iorque, apanhei um avião para Londres. Levava dois objectivos ‘na bagagem’ (isto se o avião não caísse): visitar um amigo chegado que estava então a estudar em Nottingham, a cidade de Robin Hood;e…

Assim que regressei a Londres, depois de ter estado com o meu amigo, dirigi-me para a National Gallery. Mas, para minha grande frustração, tinha feito mal as contas – a exposição terminara alguns dias antes. Tive uma pequena consolação: na altura ainda se vendiam slides educativos, e assim pude levar para casa uma amostra das pinturas que não tinha podido ver ao vivo.

A pintura holandesa do século XVII caracteriza-se, sobretudo, pelo fantástico uso da luz que souberam fazer os artistas. Representa frequentemente temas vulgares, corriqueiros até, mas com a sua sensibilidade e técnica prodigiosas os pintores daquela época transformaram essas cenas do quotidiano em imagens deslumbrantes. Rembrandt é talvez o nome mais célebre dessa ‘colheita’. Vermeer, um pintor do qual só se conhecem 36 obras, é o meu favorito.

Dada a escassez de quadros pintados por Vermeer – cuja vida está envolta, tal como as suas pinturas, de mistério – são muito raros os museus que podem orgulhar-se de possuir alguma obra sua. ORijksmuseum, em Amsterdão, com quatro preciosos troféus, é um recordista. Foi numa das suas salas que tive uma espécie de epifania, frente a um quadro que já vira muitas vezes em livros e de que nem sequer gostava especialmente, A Leiteira. Ao vivo, fiquei deslumbrado com aquela rapariga de lenço na cabeça, concentrada na sua tarefa de despejar o leite de um jarro para um pote.  Porém o que mais me surpreendeu foi o leite a cair, não num fio perfeito, mas numa desordem quase mais real do que a própria realidade. Poderia ter ficado muito tempo a contemplar esse pormenor quase insignificante e, no entanto, tão revelador do génio de um artista.

Quando há cerca de um ano e meio regressei à Holanda, Delft, a cidade onde nasceu e viveu Vermeer, foi um ponto de paragem obrigatória. Ali pude ver a Guilda de S. Lucas, hoje transformada num pequeno museu dedicado ao mestre.
Aminha admiração por Vermeer levou-me também a Haia, que me surpreendeu por ser uma metrópole ultra-moderna, com arranha-céus de 40 andares e auto-estradas que atravessam edifícios.

É em Haia que se encontra o Mauritshuis, um dos melhores museus do mundo para apreciar a pintura do século de ouro. Mas, para meu desespero, quando o visitei, bati com o nariz na porta. O museu estava fechado para obras de renovação, só tendo reaberto há uma semana. Recordei-me da minha experiência frustrada em Londres e concluí que a minha paixão pela pintura holandesa não era correspondida… Eu bem que ia ao seu encontro, mas ela parecia não querer nada comigo.

Explicaram-me então que algumas das pinturas tinham sido transferidas para um museu na outra ponta da cidade, onde cheguei dois minutos antes de encerrar. Esbaforido, passei por vários corredores até conseguir entrar na sala desejada, segundos antes de um segurança fechar a porta. No momento em que finalmente estava em frente a uma célebre pintura de Vermeer, Vista de Delft, que o escritor francês Marcel Proust considerou a mais bela do mundo, oiço alguém exclamar. «Eu não acredito!». Voltei-me para trás e vi o meu amigo Jorge Almeida, com quem – coincidência das coincidências – tenho mantido longas conversas sobre pintura. Disse-me ele que a Rapariga do Brinco de Pérola, outra obra-prima de Vermeer, estava no Japão. Ambos ficámos com pena de não a ver. Mas, face àquele ‘encontro do diabo’ (assim o baptizámos de imediato) que importância tinha esse pequeno contratempo?  

jose.c.saraiva@sol.pt