Beatos de Deus e de Lenine

No final da adolescência visitei-os em sua casa. Ele estava num sofá, ela era vida, de vez em quando aparecia, ouvia e dizia de si e do mundo. Falámos de televisão, ele era o mítico crítico e ela a escritora de referência dos jovens portugueses, não era coisa pouca, não foi coisa pouca.

Continuei a frequentá-los. A pensar na sua história, no preço que pagaram por serem comunistas e católicos, de um lado e do outro nunca os seus camaradas ou irmãos se puderam tranquilizar, de um lado e do outro julgaram neles não poder confiar totalmente – os comunistas por desconfiarem dos beatos de Deus, os católicos por desconfiarem dos beatos de Lenine. 

Conheci poucos como eles, um casal antidogmático, heterodoxo, generoso, respeitador das diferenças, talentoso, romântico. Frutos do destino. Porque ele era jornalista do Diário de Lisboa quando ela enviou um texto para ser publicado no suplemento juvenil, tinha apenas 14 anos. Um texto não publicado, mas suficiente para receber uma carta do jornal que lhe pedia para não desistir de escrever. Assinada por ele. Haveriam de se apaixonar vários anos depois. Ele tinha mais 23 anos. As amigas e família pediram-lhe que não embarcasse em tal monstruosidade, na melhor das hipóteses acabaria a tratar-lhe as mazelas, a ser cuidadora e não uma mulher por inteiro. Mas o destino ‘ofereceu-lhe’ um cancro a ela e foi ele quem a tratou, quem cuidou, quem a convenceu, pela segunda vez, a não desistir. 

Mário Castrim e Alice Vieira. 

Viveram 40 anos juntos, Mário morreu em 2002, no início do Outono. O funeral foi celebrado e ‘organizado’ pelos missionários combonianos, amigos do casal com quem o jornalista colaborava de um modo muito próximo. 
Porquê a memória? Por uma daquelas coisas que não se explicam, o fio invisível de que falo tão bastas vezes. Há uns dias, num texto para amigos, escrevi da morte, o que a alguns assustou: «No dia do meu velório não quero caras tristes, filhos chorosos e o meu amor, os meus amores, família e amigos a pensar que deveríamos ter feito isto e aquilo, que deveriam ter dito o que nunca ousaram, não… Também detestarei demasiada alegria porque me conheço, irritar-me-ei com tanta largueza de espírito, ao menos um bocadinho saudosos, sim… Desde o primeiro momento em que me recordo de recordar que não temo o último parágrafo, será o que será. E se me derem permissão ficarei para ver, tentarei até uma surpresa ou outra, mas confesso-vos que receio o momento em que as portas se fecharem à meia-noite, o instante em que ficarei sozinho até à manhã seguinte, poucas horas que servirão para me afeiçoar à eternidade, horas que temo como a um deserto bíblico». 

No mesmo dia, Alice enviou-me uma mensagem. As minhas palavras tinham-na feito voltar ao Outono da despedida, perguntou-me se sabia do pequeno poema que Mário escrevera para ser lido no seu próprio funeral. Que não, respondi-lhe que não. 

Enviou-mo.

«Lágrimas, não. Lágrimas, não. 
A sério.
Enfim, não digo que. É natural.
Mas pronto. Adeus, prazer em conhecer-vos. Filhos, sejamos práticos, sadios. 

Nada de flores. Rigorosamente.
Nem as velas, está bem? Se as 
acenderem,
sou homem para me levantar e vir
soprá-las, e cantar os ‘parabéns’.

Não falem baixo: é tarde para segredos. 
Conversem, mas de modo que 
eu também
oiça, e melhor a grande noite passe.
Peço pouco na hora desprendida:
fique eu em vós apenas como se
tudo não fosse mais que um sonho bom».   

Escreveu-o uma semana antes de morrer. Alice leu-o e permitiu-me que agora o tenha partilhado consigo. As coisas talvez não aconteçam por acaso, valeu bem a pena ter partilhado um pensamento capaz de tornar vivo outro pensamento, as últimas palavras de um mestre. 

Que, tenho absoluta convicção, aprovaria o que julgo ser a grande inquietação sobre a morte. A de a única que conheço ser a dos vivos. Porque todas as manhãs os vejo, sonâmbulos, ausentes, perdidos de destino ou identidade.

Não é fácil voltarmos a viver depois de morrermos em vida, uma sepultura mais pesada do que a terra dos ciprestes, um buraco fundo que não é compreensível para quem nele não caiu. Essa é a única que conheço. Da morte de olhos fechados, carro mortuário e cemitério, nada sei ou, pelo menos, não me lembro de que dela saiba. Mas da outra, da que é feita de vivos ausentes, sei o suficiente para preferir a vida. Enquanto cá estou. 

Da outra, do medo real da morte física, só dos tempos de infância em que chorava por antecipação. Não queria que a avó morresse. Porque haveria de morrer se dela precisava? Tenho essa memória: a minha avó materna na máquina de costurar e eu em contas de cabeça. Morreu há muito, o funeral foi no dia dos meus anos. Vendo bem as coisas como poderia não ser? É uma alegria quando a ela regresso, uma felicidade saber que estou acompanhado pelo tal fio invisível de coisas boas. Hoje, mais do que chorar pelos que partiram faria mais sentido fazê-lo pelos que não nasceram, pela vida que não aconteceu, pelas maternidades vazias, pelas mortes que superam os nascimentos. Não é o fim da vida que me preocupa, apenas a falta de esperança.