Ronaldo+22?

«Lá vai Ronaldo!», «Atenção a Ronaldo!», «Olha Ronaldo!», «Ronaldo está na área!», «Bola na direcção de Ronaldo…» – estas frases e outras semelhantes ouviram-se até à exaustão nas transmissões televisivas dos jogos da Selecção portuguesa. E não eram ditas mas sim gritadas, num tom que roçava a histeria.

O nacionalismo é compreensível e em muitas situações até é salutar, mas – francamente! – a idolatria é condenável e os jornalistas têm de manter um mínimo de dignidade.

Os jornalistas são profissionais que têm por dever cumprir um código deontológico – e, admitindo-se que torçam pela nossa Selecção, não podem perder completamente a compostura e começar a berrar aos microfones como se fossem mulheres histéricas. Nem podem comportar-se como hooligans.

O pecado dos jornalistas portugueses começou em Lisboa, onde – em intermináveis programas televisivos que se prolongavam pela noite dentro – tentavam convencer os incautos de que a nossa selecção era excelente. Que podia sonhar com todas as conquistas. Que ultrapassaria calmamente a fase de grupos e depois iria por ali fora, chegando talvez à final – e numa final tudo pode acontecer… 

Quando o presidente da Federação disse que o primeiro objectivo era passar a fase de grupos, todos lhe caíram em cima, acusando-o de ser «pouco ambicioso». Afinal, o homem era ambicioso demais…

Qualquer pessoa medianamente conhecedora de futebol podia ver que a nossa Selecção era fraquinha. Pepe, Bruno Alves, Meireles e Hugo Almeida começam a ter demasiados jogos nas pernas. Ronaldo e Coentrão chegaram a esta altura da época de rastos e tocados. Nani, Éder e Postiga estiveram grande parte da época sem jogar. João Pereira e Veloso são jogadores banalíssimos. João Moutinho fez uma época para esquecer.

Assim, só um milagre podia transformar aquele conjunto de jogadores cansados, doentes ou sem ritmo num grupo vibrante, capaz de jogar com intensidade e alegria. O mais provável era arrastarem-se em campo. Mas os jornalistas elevaram tremendamente as expectativas, como se fôssemos os melhores do mundo – ou andássemos lá muito perto.

A crítica ao comportamento dos jornalistas, quer por total falta de isenção quer por semearem esperanças vãs, é o meu primeiro reparo. O segundo vai para o endeusamento de Ronaldo. Parecia que a Selecção era Ronaldo+22. Nas conferências de imprensa, não perguntavam ao jogador presente como ele estava, como se sentia. Perguntavam-lhe como estava Ronaldo.

Os outros jogadores, apesar da sua paciência, já se enfastiavam com esta obsessão por Ronaldo, e é óbvio que ela teve consequências. Ninguém gosta de se sentir desprezado. Ora, excepção feita a Ronaldo, os jogadores portugueses sentiram-se permanentemente desprezados.

Quando no estádio a bola chegava a Ronaldo, a multidão agitava-se e ouvia-se um clamor: «Ahhhhhhhh!». Quando a equipa chegava aos hotéis ou aos locais dos treinos, as pessoas só tinham olhos para Ronaldo. Contra isto não era possível fazer nada. Mas, ao menos, os jornalistas portugueses poderiam ter tentado pôr água na fervura – chamando a atenção para o facto de uma equipa serem onze jogadores, que têm de funcionar em campo como um colectivo. E que não é saudável um dos jogadores ser visto como um reizinho e os outros sentirem-se simples plebeus, vocacionados para tarefas menores e votados ao esquecimento.

Mas a imprensa portuguesa fez o contrário: participou em cheio na ronaldomania, no endeusamento de Ronaldo, na histeria em torno de Ronaldo. Os directos das televisões começavam com o boletim clínico de Ronaldo. 
Acresce que a colocação de tantas expectativas em torno de Ronaldo, para lá de desmotivadora para os outros, nem sequer era muito inteligente. Porque cedo se percebeu que Ronaldo nunca estaria neste Mundial a mais de 50%. Isso mesmo se viu nos últimos jogos que fez pelo Real Madrid. Não era racional pôr todo o foco num jogador diminuído.

O resultado de toda esta loucura foi o que se viu: o descalabro. A veterania de alguns jogadores e o desgaste de outros conduziram a uma onda de lesões nunca vista. O único jogador capaz, segundo a imprensa, de nos dar alegrias estava impossibilitado de o fazer por limitações físicas. Os outros 22 foram votados ao desprezo. Um grupo assim nunca será capaz de chegar longe. 

Esta Selecção está esgotada. A média de idades é de 29 anos, o que fazia dela a segunda selecção mais velha das 32 presentes no Brasil. É preciso renová-la profundamente. Mas com quem? Em Portugal cada vez nascem menos futebolistas. O jogador mais talentoso da nova geração, William Carvalho, não nasceu em Portugal mas sim em Angola. E para lá dele o que vemos? Os principais clubes, Porto, Benfica e Sporting, para fazerem equipas competitivas, têm de ir buscar jogadores ao estrangeiro, designadamente à América Latina. 

Quando olhamos para os bancos de suplentes da Argentina ou da Colômbia, já não falo no Brasil, vemos jogadores que tinham (todos) lugar assegurado na equipa portuguesa. E nesses países há sempre jogadores a afirmar-se – enquanto os nossos, que até conseguem fazer coisas interessantes nas selecções jovens, quando chegam a adultos não mostram categoria para jogar nos grandes. São bons para o Rio Ave, para o Vitória de Setúbal, para o Paços de Ferreira…

Alex Fergunsos dizia, a propósito dos jogadores ingleses, que eles já não têm hoje o mesmo espírito de sacrifício porque nascem em bairros da classe média – enquanto os do seu tempo vinham de bairros pobres, onde se jogava à bola na rua, estando habituados a fazer sacrifícios.

Em Portugal também se jogava à bola na rua – mas esse tempo passou. O problema é que não só não aparecem jogadores com espírito de sacrifício, como não aparecem jogadores com um mínimo de categoria.
Insisto: para lá de William Carvalho, quem pode garantir o futuro do futebol português? Rafa, André Almeida, Éder? Por muito respeito que estes jogadores mereçam, comparem-se com Figo, Deco ou Pauleta. 

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