Martin Provost: ‘Ninguém sai ileso da leitura da sua obra’

Martin Provost resgata a escritora Violette Leduc do esquecimento com um filme biográfico e literário, que cumpre os desígnios de Simone de Beauvoir e Jean Genet.

Bastarda, feia, nevrótica, com uma “frenética carência de amor”, mas muitíssimo subversiva e corajosa. A que se deve o génio literário de Violette Leduc?

Ninguém sai ileso da leitura incómoda e perturbadora da sua obra. Quis reconstituir o choque que tive com essa experiência. Não me interessava contar a vida de Violette, mas sim explorar o processo que lhe permitiu salvar-se através da escrita. Ela escreveu a partir da sua vida: da solidão, da fealdade, dos amores impossíveis, devoradores, obsessivos, da dificuldade em encontrar um lugar num mundo que, à época, estava reservado aos homens. Costumava dizer: “A literatura conduz ao amor e o amor à literatura”. Essa fome de amor é central na obra de Violette e também no meu filme. O primeiro impulso é o amor não correspondido pelo sulfuroso Maurice Sachs. Depois,  o amor incandescente e formador por Simone de Beauvoir impulsiona várias etapas que lhe permitem criar uma obra – elas serão a coluna vertebral do filme. Apesar da sua frieza, opacidade e aparente dureza, sem Simone, Violette não teria sido ninguém.

Qual a actualidade da personagem?

Violette vivia à margem das regras sociais. Durante a guerra e no pós-guerra, graças a vários tráficos ilícitos, ela conseguiu sentir-se pela primeira vez independente e livre. Pareceu-me fundamental começar o filme por esse momento que prefigura a sua obra, tão importante enquanto exemplo de transgressão e posição de força. Quando conhece Simone e renuncia ao mercado negro, Violette lança-se no vazio, sem rede. A fusão entre a vida e a obra vai ser a transgressão seguinte, plena dessa 'sinceridade intrépida' que tanto impressionava Simone de Beauvoir.

“O meu lugar é em mim mesma. O resto é vaidade”. A força da obra de Violette advém desta absoluta exposição autobiográfica. Como expor de novo a sua vida, mantendo-se fiel à sua voz?

Marginal, imprevisível, Violette provoca e incomoda a sociedade do seu tempo. Ela grita alto e em bom som tudo o que queriam que reprimisse ou escondesse: a feminilidade, a bastardia, a frustração sexual, a recusa do casamento e da maternidade, a bissexualidade… Do mercado negro ao encontro inesperado e tardio com o público (com A Bastarda, em 1964), ela vive um percurso iniciático, de libertação. Enquanto motor do filme, quis tornar palpável a complexidade da relação com Simone de Beauvoir: feita de rivalidade visceral, admiração recíproca, desejo sexual, ciúme, às vezes de arrependimento. Simone está no auge, enquanto Violette está na sombra, sozinha, ignorada, sem recursos. Elas eram da mesma idade, mas tudo as separava: a aparência física, o temperamento, as origens sociais, o estilo, o percurso, tudo. Por contraste, a personalidade impenetrável, reflexiva, quase monolítica de Simone permitia-me evidenciar a instabilidade, a subjectividade à flor da pele, a desmesura de Violette. Simone era demasiado lúcida para cair nas armadilhas de Violette. Em privado, chegava a chamar-lhe: 'a mulher feia'. Mas ela tinha plena consciência do génio de Violette, algo que sabia não possuir. Creio que foi a relação entre estas duas mulheres que me permitiu ser fiel a Violette.

Que outra Simone de Beauvoir nos é revelada através de Violette?

A Simone dos primeiros tempos, sozinha, a sofrer por causa de Sartre – ao contrário do que se diz, ela não gostava das suas ligações com outras mulheres – e a viver um pouco na sombra dele. Depois do encontro com Nelson Algreen, surge mais feliz, mais aberta. Impressionou-me muito a possibilidade de, em segredo, ela ter pago uma pensão a Violette: um gesto admirável. Em vez da figura pública, quis mostrá-la mais íntima, quotidiana, contraditória, engajada. Ela lutou toda a vida pela condição das mulheres e fê-lo também através de Violette. Ajudando-a, ajudou todas as mulheres.