Maria de Belém Roseira: ‘Um partido fracturado estará enfraquecido nas legislativas’

A presidente do PS diz que impediu que o processo das primárias se arrastasse em tribunal, de impugnação em impugnação. E conta que se aconselhou com Almeida Santos.

Maria de Belém Roseira: ‘Um partido fracturado estará enfraquecido nas legislativas’

Estatutariamente, o presidente do PS deve empenhar 'a sua magistratura moral na defesa da unidade e coesão do partido'. As primárias são uma ameaça à coesão?

Ficou decidido, em Comissão Política, assegurar a transparência de todo o processo e alargar a democraticidade dos partidos políticos para não ficarem enquistados no seu universo tradicional, o dos militantes. Ao existir uma comissão eleitoral própria, formada por pessoas qualificadas e com um grande conhecimento do PS, penso que é de confiar que este será um processo de transformação para melhorar a relação que a população tem com os partidos políticos.

Não a perturba que todo este processo aconteça à margem dos estatutos do PS?

Há matérias que podem ser decididas não pelos estatutos mas pelos militantes nos órgãos próprios do PS. E esta não é uma consulta com impacto jurídico, só tem impacto político. Se tivesse impacto jurídico preocupava-me. Porque só tem impacto político não me preocupa, e foi decidida numa comissão política, que é um órgão ao qual eu não presido. Mas é uma decisão legítima.

Nos incidentes que ocorreram em Ermesinde, com insultos e ameaças a António Costa, a senhora optou por fazer uma participação ao Ministério Público. Não lhe era possível, ao invés, apurar os factos?

Eu não tenho poderes de fiscalização desse tipo de factos. Existem estruturas jurisdicionais federativas e a nível nacional, mas que se aplicam a militantes. Mas houve incidentes com pessoas que não são do conhecimento destas estruturas, podiam ser pessoas que não são militantes do PS e que até sejam militantes de outros partidos. Constituindo a injúria e a ameaça crimes, acho que a estrutura própria para os investigar, no respeito pela separação de poderes, é a Procuradoria-Geral da República.

Mas não fez nenhum inquérito prévio para avaliar se eram militantes?

Não o posso fazer, não cabe nas minhas funções. As estruturas partidárias poderão fazê-lo, no âmbito dos poderes federativos, como referi há pouco, mas naquele caso concreto em que havia uma multidão, havia populares, e foi assim que foi divulgado na televisão, entendi que devia fazer dessa forma.   

Há quem a tenha acusado de ser demasiado legalista na aplicação dos regulamentos do partido, por exemplo quando não autorizou na Comissão Nacional que se introduzissem novos pontos sem ser por unanimidade.

Algumas pessoas fizeram essa leitura, no vosso jornal também. Mas é errada e explico porquê. Se num processo em que há posições muito diversas não seguirmos a lei – não só os estatutos do PS como a lei dos partidos políticos e a própria Constituição da República – quem não se conformasse com a decisão iria impugná-la judicialmente. Se fôssemos de impugnação judicial em impugnação judicial o processo não estaria acabado. Portanto, ao contrário do que se diz, isto garante que os prazos possam ser cumpridos e não adiados sem que tenhamos qualquer espécie de controlo, pois estaremos sujeitos aos tempos dos tribunais. Foi pois a única maneira de garantir que a legalidade fosse respeitada e que não houvesse hipóteses de impugnação judicial. Aliás, não decidi sozinha. Conversei muito com Almeida Santos, que é agora presidente honorário e um ilustríssimo jurista. Articulei com ele o que podia ser a minha decisão.

É impossível mudar de secretário-geral sem ser pela vacatura do cargo? Têm razão os que falam em blindagem dos estatutos?

Nunca foi possível escolher um secretário-geral a não ser pela vacatura do cargo. Não é uma blindagem dos estatutos. Sempre que houve escolha de novo secretário-geral foi porque o secretário-geral em funções anunciou que iria sair. Foi assim com todos os secretários-gerais. O que se passa na política é o que se passa na física: não se pode ocupar o que está ocupado.

A senhora foi uma escolha de António José Seguro para presidente do PS. Vai votar nele agora nas primárias?

O meu papel é de equidistância em relação aos dois candidatos. Ninguém me verá a fazer campanha por ninguém.

O que pensa de António Costa?

Penso bem de António Costa. E também de António José Seguro. São dois distintíssimos militantes como muitos anos de entrega à vida política. Qualquer deles terá em mente a indispensabilidade da união do partido. Porque um partido fracturado estaria enfraquecido nas próximas eleições.

Acha que havia razões para esta disputa pela liderança acontecer?

Isso cabe aos candidatos dizer. Eu só desejo que esta disputa acabe como acabou, em 2004, a eleição para secretário-geral que envolveu José Sócrates, Manuel Alegre e João Soares. Que foi um respeito muito grande entre todos. Precisamos de um PS forte, coeso e reforçado.

Qualquer dos candidatos dá garantias que isso aconteça?

Acho que sim. Quem quer que ganhe vai querer afirmar o PS como um grande partido de poder.

O que correu mal para a vitória insuficiente do PS nas europeias?

Não considero que tenha sido uma vitória insuficiente. Porque o PS concorreu contra os dois partidos que estão no Governo coligados. O PSD sozinho nunca tinha tido menos de 30% nas eleições europeias. Tendo em atenção o grande distanciamento que hoje os cidadãos têm dos partidos políticos o que me preocupou foi a elevadíssima taxa de abstenção. E isto mais aconselha no escrutínio que os partidos devem fazer do exercício dos seus deveres.

O PS deve de preferência aliar-se à esquerda?

O PS deve alinhar-se com aqueles que estejam dispostos a sustentar a sua política de combate às desigualdades, que está a atingir foros de escândalo, e que sejam capazes de apostar na qualificação, no emprego e na investigação para alterar o nosso modelo produtivo. Acho que muitas pessoas, quer à esquerda, quer à direita, se revêem nestes valores matriciais.

O Partido Livre e a saída de Ana Drago do BE abrem novas possibilidades de desbloqueio à esquerda?

Temos tido uma esquerda bloqueada e o PS, como partido charneira, é criticado, quer pelos que estão à nossa esquerda quer pelos que estão à nossa direita. E à esquerda, constituímos uma ameaça para a captação de votantes dos partidos nesta área. Há hoje em dia muitas vozes à esquerda, como a Renovação Comunista, o Livre ou o movimento no qual Ana Drago milita, o Fórum Manifesto, que percebem que isto não tem jeito nenhum e que é altura de nos deixarmos de tabus e reservas em relação àquilo por que vale a pena lutar.

Que balanço faz de três anos de liderança de António José Seguro?

Foi uma liderança difícil, na sequência da crise financeira, de um governo muito ortodoxo, renitente a qualquer sugestão, que recusou todas as propostas do PS, apesar de contar com o apoio do PS à sustentação do memorando. Alterou o memorando sem nunca ter falado com o PS e nunca aceitou uma sugestão numa altura de fragilidade em que era importante algum consenso nacional. Estivemos sempre em desacordo com esta destruição programada da economia mais frágil, que responde à procura interna, que arrastou as pessoas para o desemprego.

Até que ponto será importante envolver o PS num consenso para a escolha do próximo comissário europeu?

José Sócrates apoiou Durão Barroso por ser o lugar que era (presidente da Comissão Europeia), quando sendo um governo PS seria natural que o PS indicasse um comissário europeu. Eu acho que agora, que ainda para mais o PS ganhou as eleições europeias, o comissário ou comissária devia ser indicado pelo PS. E o PS faria com certeza a indicação de uma pessoa muito competente que merecesse o apoio do Governo.

Maria João Rodrigues poderia ser essa escolha?

Por exemplo.

A senhora pediu uma reflexão sobre as comissões de inquérito parlamentares para que estas passassem a reflectir a verdade material e não fossem alvo do veto constante da maioria. Tem ideias para resolver o problema?

Podemos ter decisões por maioria qualificada, sobretudo nas comissões de inquérito potestativas. Nestas comissões, funcionar a regra da maioria simples, quando elas à partida são contra a vontade da maioria parece-me desajustado. Depois deve aplicar-se às comissões de inquérito legislação que entretanto foi sendo alterada, como a matéria do sigilo bancário. O levantamento do sigilo bancário não está vedado nas execuções judiciais mas continua vedado nas comissões de inquérito.

Não há o risco de transformar as comissões parlamentares em órgãos quase-judiciais?

As comissões parlamentares nunca poderão ter a titularidade da acção penal, que é um poder próprio do Ministério Público. Agora há alguns poderes que o Parlamento tem de ter para ir a fundo na escalpelização da responsabilidade política. E hoje, tudo o que tem que ver com o sistema financeiro tem uma relativa opacidade, com um impacto político tremendo. 

manuel.a.magalhaes@sol.pt