Um mundo de horrores

Pelo menos desde o início deste século que não assistíamos à eclosão simultânea de tantos horrores em várias partes do mundo. Horrores produzidos pela demência dos homens e encarados com indiferença e cinismo pelos que, em número crescente, se acomodam à sua banalização. 

Eis o pensamento dominante: se o mundo é hoje como é, teremos de habituar-nos às derrapagens, vertigens, atropelos e atentados aos direitos humanos mais elementares que se sucedem da Ucrânia à Faixa de Gaza, para não falar de todo um Médio Oriente onde a esperança das Primaveras Árabes foi abruptamente devorada – porventura com uma única excepção: a Tunísia – pela guerra implacável que opõe extremismos islamistas, regimes militares autoritários, sem esquecer o ódio ancestral e ciclicamente reacendido entre israelitas e palestinianos. 

Por mais intoleráveis que sejam os massacres das populações civis em Gaza, incluindo dezenas e dezenas de crianças, parece impossível fazer parar essa roda infernal. A democracia israelita – ou já o seu simulacro político – sucumbiu ao apelo auto-destruidor do confronto com os extremistas islâmicos à custa do sofrimento popular, favorecendo, assim, a proliferação dos movimentos de iluminados suicidas, a quem apenas resta a religião do terror. 

Entretanto, já eclipsados pelas últimas notícias de Gaza e da Ucrânia, a Síria e o Iraque são reduzidos a ruínas que a legião de fanáticos do chamado Estado Islâmico sunita vai ocupando até às portas de Bagdade (ainda nas mãos de um Governo xiita agonizante no seu intransigente sectarismo). A partir do centro deste terrível vulcão, como evitar o alastramento da guerra através de toda uma região do mundo às portas da Europa, para onde tenta evadir-se uma multidão de homens sem pátria? E para lá do Médio Oriente, que outros efeitos de contágio incontroláveis espreitam num Afeganistão outra vez em sobressalto pós-eleitoral e à mercê, como o vizinho Paquistão, do fanatismo talibã? 

De que serve a indignação contra a loucura à solta no mundo quando somos colocados perante a conformação das potências internacionais que poderiam influenciar o curso dos acontecimentos e impedir o pior? Pelo contrário, o sentimento cada vez mais generalizado é, precisamente, o de que o pior ainda está para vir. Que se seguirá, por exemplo, após o derrube do avião da Malaysia Airlines, transportando 298 passageiros, num território dominado pelos separatistas pró-russos?

Depois da limpeza efectuada pelos separatistas na zona onde caiu o avião, são muito poucas as garantias de que a inspecção independente aos destroços possa fornecer dados concludentes sobre a autoria do crime. Mas as próprias hesitações e ambiguidades de Putin parecem revelar a situação comprometida em que ele se encontra face aos seus protegidos suspeitos do disparo contra a aeronave. Além disso, a colaboração de Moscovo no acesso à área do sinistro ou noutras diligências para esclarecer a verdade foi, na prática, inexistente. 

Simplesmente, nem depois disto a Europa – atingida directamente pela morte de mais de duas  centenas dos seus cidadãos – se mostrou decidida a falar a uma só voz sobre as responsabilidades russas no apoio militar e político às milícias separatistas no Leste da Ucrânia. Houve uma única voz mais dissonante e vigorosa: a do primeiro-ministro britânico, David Cameron. E o agravamento das sanções contra a Rússia proposto pelos Estados Unidos continua a inspirar um insondável temor – e tremor – aos interesses europeus. O mercantilismo chegou ao extremo no caso da França, que afirmou não desistir da venda de uma fragata a Moscovo. Hollande perdeu mesmo a vergonha. 

Ora, a vergonha é o que também mais falta faz neste mundo onde a corrupção «mina as democracias e desprestigia os partidos políticos e todas as instituições sociais» conforme lembrou Vargas Llosa, esta semana, durante o seu doutoramento honoris causa na Universidade Nova de Lisboa. Uma vergonha porventura não sentida por aqueles que acolheram o pequeno mundo de horrores da Guiné Equatorial na CPLP, trocando princípios, valores e até a língua comum pelo cheiro do petróleo. 

Apenas Cavaco Silva se permitiu destoar, embora simbolicamente, dessa falta de vergonha, ao insistir em manter o princípio da abolição da pena de morte no documento vinculativo da adesão da sinistra ditadura de Obiang à CPLP. Ter visto personalidades como Lula da Silva, Dilma Rousseff e Xanana Gusmão – o grande herói da independência timorense – a apadrinharem essa corrupção de princípios elementares, em troca do maná petrolífero de um país pária da comunidade internacional, não deixa de ser um sinal destes nossos tempos. Um sinal que ilustra a indiferença e o cinismo crescente a que tantos se vergam perante os horrores do mundo.