Prisioneiros do absurdo

Tal como os horrores do mundo de que falava na crónica anterior, assistimos hoje à multiplicação de situações absurdas, aparentemente inexplicáveis e inverosímeis, mas que, passado um primeiro choque de estupefacção, acabam por banalizar-se aos nossos olhos como reflexos de uma nova normalidade, uma realidade virada do avesso ou colocada de pernas para o ar. 

Não, já não há lugar para surpresas ou espantos quando protagonistas e observadores dos acontecimentos se tornam virtualmente prisioneiros do absurdo.

Como explicar, por exemplo, a vertigem delirante atingida pelo folhetim dos episódios do BES? Apesar da minha consabida ignorância em matéria de finanças e congéneres, tinha toda a razão para desconfiar que as garantias oferecidas pelo Banco de Portugal (BdP) sobre a imunidade do Banco, agora presidido por Vítor Bento, ao contágio do intrincadíssimo universo tóxico do GES não passava de uma proclamação piedosa em risco de ser desmentida a todo o momento. Nada que não fosse previsível, aliás, à medida que se iam tornando públicos os sinais de descontrolo demencial na gestão do GES e do BES. 

Afinal, a hecatombe financeira do BES revelou-se mesmo muitíssimo maior do que se pressentia (3577 milhões de euros no último semestre, o maior buraco da história empresarial portuguesa), pondo em xeque o persistente optimismo do BdP que, ainda no princípio desta semana, continuava a insistir tranquilamente na existência de investidores privados disponíveis para acorrer à recuperação do Banco e no recurso à sua recapitalização pública. 

Se o papel do BdP era necessariamente ingrato, como bombeiro de um incêndio em propagação constante, a sua tendência natural para acalmar os ânimos incandescentes dos mercados acabaria por favorecer um clima de desconfiança e desnorte, com nova queda abissal das acções do BES, antes ainda de ser conhecida a extensão do buraco financeiro. 

Até que caiu finalmente a bomba atómica: já sem margem de manobra, o BdP decretou a defenestração definitiva da família Espírito Santo, por entre acusações de «actos de gestão gravemente prejudiciais» e ameaças de eventual participação criminal contra a anterior administração do Banco.

Há aqui um candidato principal a prisioneiro do absurdo: chama-se Ricardo Salgado. Ele foi-se enredando cada vez mais na sua própria rede – uma teia sem fim e manifestamente incontrolável por um homem reduzido à sua solidão majestática –, com as mil e uma holdings, subholdings e empresas-fantasma do GES devorando-se num processo autofágico e de ocultação frenética da realidade. 

Ora, o que (ainda) espanta é que esse processo tinha raízes antigas e conhecidas há longo tempo, florescendo e frutificando de forma malsã perante a cegueira do seu protagonista ensimesmado e dos que o rodeavam e observavam, também eles prisioneiros do absurdo.

Quando finalmente soaram as sirenes de alarme e o BdP interveio, era já tarde demais. Foi também o que aconteceu com a Justiça que, ritualmente, não dispensou uma nova encenação mediática para demonstrar a sua existência. Agora, há inquietantes motivos para recear que seja igualmente tarde demais para evitar o contágio do GES e do BES a toda a economia portuguesa.

Este colapso anunciado e de consequências terrivelmente corrosivas coincide com um momento especialmente preocupante para o futuro do país, quando se verifica um novo – e, aliás, previsível – agravamento da nossa dívida externa. Segundo uma notícia do Público de domingo passado, um estudo de dois economistas estrangeiros – o americano Barry Eichengreen e o italiano Ugo Panizza – volta a lembrar o que já sabíamos há longo tempo mas que o Governo português e a troika insistiram sempre em iludir. 

Ou seja: sem reestruturação da dívida (impronunciável e inoportuníssima palavra que é suposto assustar de morte os nossos credores!) não haverá qualquer hipótese de honrar o seu pagamento. E isto não se aplica apenas a Portugal mas a todos os países europeus com uma dívida de expressão equiparável.

Desde 1974 – recordam os autores do estudo – apenas três países conseguiram os excedentes que Portugal se propõe atingir para satisfazer os encargos com a dívida: a Bélgica, a Noruega e Singapura. Os países europeus em crise precisariam, por isso, de registar excedentes primários absolutamente excepcionais e inverosímeis para alcançar esse objectivo, quando a conjuntura internacional – e sobretudo europeia – aponta claramente no sentido oposto (como confirmam a generalidade das previsões oficiais, nomeadamente do FMI, sobre as expectativas de crescimento). 

Mas a religião do absurdo que prevalece na Europa insiste na cegueira intransigente face às evidências mais cruas.