A teia de Ricardo Salgado

A queda de um poderoso convoca sempre sentimentos contraditórios. E, não raramente, mesquinhos. São aqueles que o serviram de perto – ou dele se serviram – e que temem pelo seu futuro imediato. São aqueles que o invejaram de longe, lhe cobiçaram o poder, e agora lhe atiram impropérios. É dos livros. E da natureza…

Ricardo Salgado, caído em desgraça reputacional, não poderá estar surpreendido com as traições, deserções e o volte-face de muitos que o acompanharam, reverenciais, gabando-se da proximidade.
Tão pouco poderá admirar-se com o comportamento de muita comunicação social (que ele alimentou com publicidade cirúrgica, para a domesticar melhor). 

Antes do 25 de Abril já havia banqueiros embevecidos com os jornais, comprando-os quando podiam, para os sujeitar, depois, à panóplia dos seus interesses. 

Miguel Quina, do antigo Banco Borges & Irmão, foi um deles. Chegou a dominar o extinto Diário Popular – um vespertino cujas vendas fariam hoje corar a maioria dos matutinos lisboetas –, e o Jornal do Comércio, à altura uma raridade na incipiente área económica. 
Francisco Balsemão, hoje titular do maior conglomerado de media em Portugal, viu-se constrangido a deixar, então, o Diário Popular, onde despertou para a imprensa, por causa da aquisição da empresa (de maioria familiar) pelo banqueiro. 

Foi a sua sorte. O aparecimento do Expresso ficou a dever-se a esse episódio que o marcou.
A entrada da banca na órbita da imprensa não se fez sem consequências. De Miguel Quina a Jorge de Brito. Havia nas redacções listas de intocáveis, ditadas pelos accionistas de referência. 

O enredo repete-se, com as adaptações próprias da época – em nome de uma estratégia conjuntural ou da conversão forçada de empréstimos em capital. O BES esteve na primeira, o BCP apareceu na segunda. 
Para uma dinastia que se moldou a diferentes poderes, ao longo de mais de um século, a teia de cumplicidades teria de ser ramificada.

O Grupo Espírito Santo foi o porto de abrigo de não pouca gente – vinda de partidos ou de Governos –, a quem protegeu e deu emprego. Podem imaginar-se as fidelidades tecidas ao longo do tempo. 
Os laços estreitos do anterior primeiro-ministro, José Sócrates, com Ricardo Salgado e o BES são suficientemente conhecidos. Uma verdadeira parceria público-privada, como já foi escrito de forma certeira. 
Sobejou obra financiada e alavancada, aproveitando a muitos que não ao país. E nos media – sem esquecer este jornal –, pelo menos a TVI e o Expresso estiveram na rota das ambições, patrocinadas por Sócrates, quando sonhou acabar com rebeldias.
Como foi possível o desmoronamento, quase súbito, desta complexa rede de influências e de cumplicidades?
Poderá intuir-se, talvez, que é da lógica do poder. No Brasil, um ícone carismático, como Lula da Silva, não ficou confortável no Palácio do Planalto quando se descobriu a vasta malha de corrupções do ‘mensalão’, levando à detenção de figuras proeminentes do aparelho político, incluindo alguns seus colaboradores directos. 

A queda do poderoso ‘dono disto tudo’, está a amarelecer as páginas de jornais que lhe dedicaram, até há bem pouco, textos laudatórios, ilustrados com gráficos de amigos e adversários. 
Os resultados semestrais do BES arrepiam e forçam um aumento urgente de capital. Os comunicados do Banco de Portugal procuram tranquilizar, mas admitem o recurso à ‘almofada’ pública se os accionistas privados não se chegarem à frente.

Que se passou? Usura do poder, cortesões acríticos, deslumbramento, arrogância, incompetência da gestão, fuga em frente? Decerto, um pouco de tudo isto. 

Mas é curto. Ricardo Salgado, que reconstituiu e alargou o império dinástico, pós 25 de Abril e nacionalizações revolucionárias, viu-se detido, arguido, pronunciado por um juiz, caucionado para sair em liberdade. Terá com certeza uma história secreta ainda por contar. 

Depois de Champalimaud e de Jardim Gonçalves não faltará quem se candidate a escrever-lhe a biografia autorizada. Será, sem dúvida. um best seller. 

Entre os primeiros leitores, estarão decerto os herdeiros dos vários ramos da família desavinda, juntamente com protagonistas de muitos tabuleiros. De José Sócrates, a quem se aliou em vários capítulos da história – ungindo-o nos seus prolegómenos insensatos –, a Pedro Passos Coelho, que lhe negou a boia de salvação da Caixa, com o naufrágio à vista.

O desfecho ilustra um castelo em ruínas, construído sobre areias movediças e pantanosas. Fica por conhecer o novelo que a poeira dos escombros ainda esconde. 

A Justiça tem os seus timings mediáticos? Pelo menos, da fama não se livra. Não há fugas de informação inocentes. Nem veículos acidentais. A forma como se soube da detenção do banqueiro para interrogatório ilustra o que não deve acontecer. Instalada a dúvida sobre a dimensão da derrocada, falta saber se a Justiça actuou em tempo útil, ou tarde demais, a reboque dos acontecimentos. Com fogo de artificio para encher o  palco.