Rui Reininho: ‘Sou um cavaleiro da triste figura’

Há pessoas com tempo e mundos muito próprios. Daquelas que fogem ao entendimento dos restantes e para as quais parece fácil arranjar títulos menos abonatórios – porque é sempre fácil arranjar títulos para o que foge à norma. Rui Reininho faz parte deste grupo de incompreendidos. Mas gosta de ocupar esse lugar.

Nome maior da música feita em Portugal e em português, tem uma carreira de mais de três décadas. É ele o vocalista dos GNR – Grupo Novo Rock, banda a que se juntou em 1981, poucos meses após a sua fundação. Apesar do sucesso, Rui Reininho nunca estudou música, mas antes Cinema, na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa.

Nasceu a 28 de Fevereiro de 1955, no Porto, cidade que o viu crescer e que continua a ser o seu lar. Auto-didacta, a primeira experiência musical mais séria aconteceu em 1977, com Jorge Lima Barreto, no grupo Anar Band. Mas foi com os GNR que conquistou os palcos. Até hoje escreveu mais de 200 canções, entre as quais hinos de várias gerações, como 'Dunas', 'Efectivamente', 'Ana Lee' ou 'Morte ao Sol'.

No domingo 13 de Julho, enquanto mentor no concurso da RTP The Voice Portugal, abandonou o programa em directo e depressa as redes sociais se encheram de acusações de que estaria alcoolizado. Uma semana depois, e apesar dos rumores de que não regressaria ao programa, Rui Reininho lá esteve. E o seu regresso granjeou à RTP o quinto lugar no top das audiências do dia, o equivalente a 766.500 pessoas sintonizadas na estação pública.

O SOL acompanhou-o nos bastidores do programa e, numa conversa no camarim, descobriu mais sobre um homem para quem ironia é palavra de ordem. Efectivamente sem moralizar.

Qual a recordação mais rebelde que guarda da infância no Porto?

Foi logo no jardim-de-infância, no Colégio de Nossa Senhora da Paz… Pisguei-me. Tenho esta memória fresca porque, nos últimos momentos da minha mãe, há menos de um ano, ela começou a lembrar-se de coisas minhas. A camioneta levava-me do colégio das freirinhas, que ficava no Marquês, para casa. Eu morava na Baixa e um dia resolvi fugir e ir sozinho. Achei que conseguia. Além disso, o meu pai trabalhava numa companhia de seguros na Baixa, a Royal Exchange, e eu tinha a ideia de que, pelo menos, conseguia lá chegar. As pessoas entraram em pânico com um miúdo de cinco anos a fugir pela rua.

E chegou a casa?

Não, fui apanhado. Uma das noviças desatou a correr atrás de mim pela Rua de Santa Catarina. Mais tarde atirei-me ao lago do colégio. Não gostava de lá estar. Tive sempre dificuldade em reagir à chamada autoridade.

O colégio era muito conservador?

Era uma maçada. Havia dois ou três miúdos mais rebeldes e inventivos, mas de resto era uma maçada. Esses miúdos já tinham muitas aventuras na cabeça e congeminavam coisas como buscas ao tesouro. Comecei a ler relativamente cedo, sobretudo o [Robert Louis] Stevenson. Além disso, o meu pai lia-me histórias de aventuras e tinha umas primas que gostavam muito de Emilio Salgari e dos Tigres de Mompracem. Na minha cabeça tinha muitas aventuras e achava que a minha vida era enfadonha.

Passou muitos anos nesse colégio?

Não. Quando transitei para a primária passei para o contingente geral, para uma escola popularíssima, cheia de meninos neo-realistas, meninos pobres de São Vítor e da Campanhã. Ali percebi que a aventura é a aventura da vida. Acho que os meus pais fizeram muito bem em pôr-me ali porque aprendi imensas asneiras, pulhices, os 'livras' eram coisas horríveis, que eu dizia em casa e deixava as minhas tias em pânico. Mas esses meninos duros revelaram-se uns companheirões. E eu gostava mais desses do que dos certinhos.

Era muito castigado?

Não. Os meus pais percebiam que eram coisas que eu ouvia e tentavam diluir. A classe média tem uma maneira de filtrar sem violência.

Falou das conversas que teve com a sua mãe na proximidade da sua morte. O que mais recorda desses momentos?

Foi há menos de um ano. Éramos bastante próximos, até porque não tenho irmãos. Com a morte da minha mãe perdi a ascendência, já só tenho duas tias. Fiquei órfão em Outubro e ainda é um bocadinho traumatizante. Por vezes sinto-me só. Os últimos dez anos passei-os com a minha mãe. Mas nos últimos momentos começou a deixar de ter a memória imediata, mas vieram ao de cima coisas da minha infância, das viagens que fizemos… Tinha uma relação muito pragmática com a minha mãe.

Mas afectuosa?

Ela era dura e mais intransigente comigo. O meu pai era um cinéfilo, muito mais complacente com os meus desvios. Embora depois, na adolescência, tivesse imensa vergonha de mim. Mas realmente eu era um cavaleiro da triste figura, como ainda sou agora, como as pessoas ainda me chamam.

Sente um misto de vergonha e orgulho?

Não. Passei uma adolescência muito dura numa cidade conservadora como o Porto. Era insultado de tudo: de drogado e larilas a gay. Nos anos 70, o meu grupo era o grupo dos freaks, era o grupo que ia para o Piolho, eram os anarquistas do Majestic, onde conheci depois o Jorge Lima Barreto, com quem venho a tocar mais tarde. Éramos uns miúdos de 16 ou 17 anos, arrogantes, mas com um sentido poético. Pegávamo-nos com os moços da Juventude Comunista que estavam na mesa ao lado no Piolho, a quem chamávamos traidores. Costumávamos dizer: 'Não nos esquecemos de Kronstadt!'. Líamos as cartilhas, tínhamos uma militância e portanto à noite íamos todos trabalhar para a cerveja, na antiga CUF, que hoje é a fábrica da Super Bock e da Unicer. Ganhávamos dinheiro, íamos viajar e trazíamos coisas proibidas para cá…

O que traziam?

Tudo o que conseguíssemos trazer. Alguns até armas traziam. Tudo o que pudesse ser subversivo relativamente ao regime. De livros a roupas, a dietilamida de ácido lisérgico ou LSD. Era uma avant garde muito interessante.

Onde as drogas circulavam abundantemente?

Fisicamente acho que tive muita sorte porque nunca fui escravo, nunca fui dependente e sentia-me um privilegiado por isso. Como me sentia um privilegiado, por exemplo, no meio gay portuense. O meu cognome era Amália porque tinha o cabelo comprido e umas certas semelhanças de cara com uma foto da Amália dos anos 50.

Abraçava esse papel de Amália? À época esse transformismo era notório noutros artistas, como o David Bowie…

Sim, tinha um cabelão, brincos… Só não punha rímel porque sempre tive muita sensibilidade nos olhos. Mas as namoradas tentavam. Vou ver o David Bowie a Hampstead precisamente nos anos 70, na fase Ziggy Stardust.

E já cantava nessa altura?

Tocava, só cantei mais tarde. Tinha uma guitarra dupla de baixo. Quando começo, com os Anar Band, aquilo era uma coisa muito avançada. Tínhamos música concreta, sons de animais…

A música que fazia era um reflexo das viagens de LSD?

Não. Sempre tive a tendência de tripar fora das consequências. Não tenho uma resistência física muito grande para essas aventuras. Não sou adicto. Por exemplo, não fumo desde que nasceu o meu filho, há 18 anos, porque achava chato aquela coisa de ter a criança ao colo e o cigarro noutra mão.

Mas o facto de uma pessoa não ser adicta não quer dizer que não seja influenciada pelos seus consumos e que, neste caso, a música não o reflicta.

Sim, mas prefiro separar. Até porque sou um bocado hipocondríaco e tenho medo, por exemplo, das taquicardias. Sinto pânico nas discotecas, por exemplo. E de estar no meio dos grandes públicos. Ainda ontem tive de atravessar uma multidão em Águeda porque as pessoas queriam autógrafos e fico aflito. Ou no Alive, em que tive de me vir embora. Não estou bem no meio da multidão.

Em cima do palco sente o mesmo?

Não, porque estou muito cercado. Sinto-me na arena. Até sou agent provocateur porque estou protegido.

É um músico autodidacta?

Sim. Tinha acesso a estudos mais académicos, mas sobretudo foi a prática através do jazz e do free jazz e de tudo o que sempre ouvi, até música ligeira como Elvis Presley. Ainda antes dos Anar Band participei numa banda de miúdos de secundário, os Sistema, numa fase em que as bandas tinham todas nomes ligados à matemática. Depois estive nos Ténia e noutra que tinha temas em latim. Foi o tempo antes da televisão. Entretanto comecei a viajar.

Qual foi a primeira viagem que o marcou?

Amesterdão. Chego lá e tenho um choque. E encontrei imensas personagens portuguesas que andavam por ali e tinham séquito, como o Dodó, o Arturinho… Sempre tive gurus à minha volta. Mais tarde lembro-me de estar em Paris, em Londres… Íamo-nos visitar uns aos outros.

De onde vinha o dinheiro para as viagens?

De expedientes. Lembro-me uma vez de estar em Paris e precisar de ir à Suíça porque estava lá a minha namorada. E de repente já íamos todos. Eram decisões de café. Eu não tinha massa para a gasolina e os restantes disseram que íamos andando. Fomos num boca-de-sapo giríssimo, quatro amigos. Eram coisas à Depardieu e Valseuses: abastecer de gasolina e arrancar. Sem pagar. Aliás, no dia em que me deixaram com a minha namorada foram apanhados. Era um gangue meio pirata…

Chegou a participar noutro tipo de crimes com esse grupo?

Lembro-me de um sítio onde parámos para jantar e eles começaram a dizer para ir saindo, depois saiu outro e outro… Claro que os tipos do restaurante acabaram por perceber e tivemos mesmo de pagar. Para nós isso era viver perigosamente, não com outros crimes. Embora houvesse muita gente que praticava crimes mais sérios. Era uma comunidade, como depois também havia a comunidade da boleia.

Apanhou muitas vezes boleia?

Sim, embora confiasse mais no comboio. Apesar de tudo eu era muito precavido. E tinha os meus pais. Trabalhava um mês nas cervejas e viajava. Depois fui apanhar fruta para Inglaterra e França, fui para as vindimas, onde se ganhava muito bem apesar de ser duríssimo. Era de sol a sol.

Nessa altura a música era acessório?

Era, apesar de uma das razões porque viajava ser também para trazer discos que não existiam em Portugal. Mas todas as pessoas que andavam nestas viagens eram muito interessantes e generosas, compartilhavam muito. Claro que também se apanhavam umas doenças de pele e uns piolhitos, porque a higiene nem sempre era muito grande e a verdade e que nunca sabíamos quem é que tinha dormido no sofá antes de nós…

E nas vindimas havia fama de se apanharem umas doenças…

Ui! Andava sempre cheio de comichões. Apanhei a minha primeira sarna com uma namorada dinamarquesa. Era muito gira, mas não tomava muitos banhos. Quando voltei a casa, a minha mãe esfregava-me com Acarilbial, que cheirava muito mal. Tive imensa vergonha, mas era de estar aconchegadinho no saco-cama… [risos]

Onde ficaram os estudos?

Tinha amigos que me diziam para ir para letras em Coimbra porque o curso era uma seca, mas havia as Repúblicas. Mas não cheguei a ir. Só estudei mais tarde, vim para Lisboa para o Conservatório de Teatro e Cinema. Estudei cinema.

Porquê cinema e não música?

Porque em música teria de estudar. Resisti sempre às coisas académicas. A música no Conservatório era para gente para quem a música séria acabava no princípio do século XX. Para eles o dodecafonismo já era avançadíssimo. Além disso, tive dificuldade naquelas coisas do PREC: as manifs, os maoístas e o sanear professores… Do ponto de vista estético nada disso me interessava, para mim era a baixa política. Os do cinema eram mais abstraccionistas.

Com o pós-25 de Abril entrou em choque com aquilo que tinha vivido até então?

Voltei para Portugal, mas achava tudo desinteressante. Por isso nunca aderi a partidos. Mas por questões estéticas fazíamos a nossa militância que era interessante. No final dos 70 regressei ao sítio de que mais gostava: Londres. Aí descubro o punk e identifico-me com esse movimento radical. Estava em Camden, ia de metro com o Billy Idol, que me chegou a pedir 20 pence. Os músicos eram tão espontâneos que acabavam os concertos e apanhavam o metro.

Vivia de quê?

Os meus queridos pais deram-me um Fiat 600 e eu vendi-o e disse-lhes que ia ser músico para Londres. E o dinheiro deu para uns meses. De resto vivia outra vez de expedientes. Tentava trabalhar o mínimo possível. Estive num restaurante, numa lavandaria… Passava-se muita fominha, mas o convívio era óptimo. Nunca soçobrei na onda do crime, nem do dealing. E foi-me proposto. Então na lavandaria vieram logo uns rastas a propor-me isso. Mas acho que tive sempre a moral superior. Isto apesar da tentação de ver os outros cheios de libras e a comerem melhor.

Mas se começasse a traficar droga também corria riscos de consumir mais…

Exactamente. Apesar de, no caso da erva dos rastas, me fazer tossir imenso. Mas não estou a dizer que era inocente. Aliás, eu ponho-me muito a jeito, digo as coisas de maneira muito desbragada.

É no regresso a Portugal que a música começa a ser mais séria na sua vida?

Sim, é paralelamente ao curso de cinema, que, aliás, eu levei a sério e de que gostei muito… De tal forma que, mais tarde, leccionei Música de Cinema na Moderna e na Católica. Costumava dizer aos meus alunos que as artes não se ensinam. Ensinam-se as técnicas, só. Na Católica, por exemplo, tinham condições fantásticas, como um acordo com a UCLA, de Los Angeles, que me permitia, por ser professor, requisitar filmes aos quais não tinha acesso de outra forma. Tentava motivar os meus alunos, mas ser de manhã não facilitava.

O próprio Rui sempre disse que, de manhã, não funcionava…

Sim, mas a partir desse momento comecei a ser exigente. As aulas eram às 10 horas num anfiteatro em que as 70 pessoas me iam entrando a conta-gotas. Tive de me impor: decidi que depois das 10h15 não entrava ninguém. Não estava para me repetir. Sou extremamente pontual.

Nesta altura os GNR já tinham sucesso. Como era a relação com as alunas?

Não exerço isso. Não faz parte do meu show, como dizia o Cazuza. Os concertos são momentos hipnóticos e, por vezes, dá a ideia de que basta uma pessoa estalar os dedos. Mas sou pelo livre arbítrio. Não gosto de impor a hipnose. Claro que as miúdas sabem que são giras e fazem charme. Sobretudo as góticas ou aquelas com ar adoentado… [risos] Mas não gosto de me envolver em demasia com as pessoas. Habituei-me a estar sozinho.

Mas teve relações duradouras?

A mais longa que tenho é com a minha cadela, já lá vão 15 anos. Por isso vou a correr de Lisboa para o Porto para a bicha não passar a noite sozinha. Chama-se Bounty, da Revolta da Bounty. E fui um homem casado, só que o ciclo dos sete anos é tramado.

Sente-se realmente melhor sozinho?

Não. Mas se as relações são insuportáveis, não há nada a fazer… Mas também sofro…

O limiar dos 60 anos fá-lo pensar que estaria melhor com companhia?

Claro! Mas isso é egoísmo puro. Como diz o Neil Young: 'A man needs a maid' [canta]. E as pessoas metem-se muito comigo. Dizem que estou a ficar teimoso…

O seu filho ajuda a colmatar a solidão?

Sim, mas ele agora tem 18 anos… Estamos a negociar o próximo mês porque percebo que ele quer é passar tempo com os amigos. Mas temos viajado juntos. Gosto muito da companhia dele.

Ele não liga ao mundo da música?

Liga à maneira dele, mas não para trabalhar. E espero que não porque isto está muito complicado. Os músicos gostam do registo do 'está tudo bem', mas as pessoas sofrem. Eu este ano, por exemplo, sinto-me super injustiçado porque tive um ano fantástico e, com as novas taxas, agora em Agosto tenho de pagar 45% de impostos. Isto é extorsão. Como na máfia. E depois está a haver uma fuga de capital no nosso meio de que ninguém fala porque senão acontece como a mim: não tocam nesses sítios. Mas há milhões que saem em festivais e isso seca tudo o que está ao lado. A Grécia terá os festivais que Portugal tem?

O problema é haver muitos festivais ou haver poucas bandas portuguesas nos festivais?

A música portuguesa nos festivais, na maior parte das vezes, não é paga. As pessoas têm é vergonha de dizer. No outro dia soube de uns moços do Porto que foram a um festival e nem sequer tiveram senhas para almoçar e jantar, só para uma das refeições. Isto apesar de terem concerto à noite e sound check à hora de almoço. Os músicos têm medo de dizer o que se passa. Eu também devia estar calado porque, por falar, não vamos tocar a alguns sítios. Por exemplo, se digo, como costumo dizer, que sou contra a Barragem do Tua, depois já não vou aos espectáculos da EDP.

Quando começou era muito diferente?

Claro que as pessoas iam na mesma a concertos maiores, mas não havia um business massificado que desprezava os outros. Hoje em dia, tirando o pai do meu querido colega Mickael, o Tony Carreira, não estou a ver ninguém em condições de fazer pavilhões ou estádios.

Mas os GNR foram a primeira banda nacional a encher sozinha um estádio de futebol. O que significou o concerto em Alvalade?

Alvalade foi uma consequência. Aquilo aconteceu porque tínhamos feito Guimarães e a Alameda e já não cabíamos noutro sítio. A partir daí resolvemos fazer um caminho mais sossegado.

De certa forma foi o auge e, a partir daí, o grupo enfrentou um certo declínio?

Sim, talvez, no ano seguinte. Tem muito a ver com as pessoas aderirem aos discos. Eu gosto do Do Lago dos Cisnes, mas a produção não funciona. Já o Popless foi uma reconquista forte do público. Tentamos sempre fazer coisas diferentes, e nem sempre as pessoas reagem bem. Parece que estão sempre à espera do mesmo, da mesma forma que agora há quem diga que nem quer ouvir o novo álbum que os Pink Floyd vão lançar.

Lembra-se do primeiro concerto?

Lembro, foi no Rock Rendez Vous, com um ambiente fantástico.

Nesses primeiros anos faziam muita estrada?

Imensa. Chegámos a fazer mais de 100 espectáculos por ano, sobretudo nos anos do Psicopátria. Depois, com o Rock in Rio Douro, já tínhamos outras condições. Foi tudo subido a pulso. Trabalhávamos que nem cães, dormíamos debaixo de pontes, tocávamos em estrados de tractor, chegávamos um pouco mais tarde ao hotel – como nos aconteceu uma vez em Lagos – e já tinham alugado os nossos quartos… Andávamos sempre ressacadíssimos nas carrinhas. Sem dormir. Fazíamos vaquinhas para garrafas de conhaque, mas depois aquilo não era o right stuff para beber numa carrinha porque ficávamos todos enjoados.

Houve concertos que deixou de dar por não estar em condições?

Só ultimamente, por coisas de garganta. Em mais de mil e tal concertos sempre tive muita sorte.

O Nicolau Breyner costumava dizer que antes de entrar em palco tinha de se embebedar… Nunca esteve tão bêbedo ao ponto de não conseguir dar o concerto? 

Aprendi que isso só dá para o primeiro quarto de hora de concerto. Depois é pior. A angústia é muito grande. Mas experimentei, claro. Lembro-me que uma vez, em Espinho ou em Vila Nova de Gaia, saí do palco e comecei a comemorar o concerto com copos, mas entretanto tivemos de fazer mais um encore. Lá fomos e deu-se uma daquelas histórias do 'maluco em contramão': a banda começou uma música e eu cantei outra.

O último álbum de originais dos GNR foi Retropolitana, de 2010. É ainda este ano que vão lançar um novo trabalho?

Sim. Mas estamos a fazê-lo de uma maneira muito soft. Vamos visitar o Mário Barreiros, vamos a casa uns dos outros, vamos enviando as faixas em separado. Só depois é que a banda se junta e então surge aquele nervoso como se fosse o primeiro concerto, há 30 anos. E há uns que ficam mesmo nervosos, como o TóLi, o nosso fundador.

Continua a preferir o palco ao estúdio?

Ai, sim! O estúdio é uma chatice.

Como é conviver com os membros dos GNR há 30 anos? São amigos?

São os irmãos que nunca tive. Mas os irmãos às vezes pegam-se e de que maneira. São os únicos que me dizem as coisas directamente. Ainda hoje tive ali em estúdio o afecto do Jorge Romão, que me disse para ter força porque o irritava ouvir os miúdos dizerem que eu era isto e aquilo. 'Eu sei que tu és um cavalheiro e hoje vais fazer um grande espectáculo', disse ele. Isso é que é de amigo.

Esse apoio teve que ver com o sucedido no domingo anterior, no qual abandonou o directo do The Voice Portugal e foi acusado de estar alcoolizado. Como viveu o dia seguinte?

Resolvi as coisas todas no camarim, na própria noite, que aliás é um hábito que tenho dos GNR. Quando um concerto me corre mal, quando estive mais pifo… Aliás, os GNR não são um grupo feliz porque às vezes, mesmo quando correu tudo maravilhosamente, há aquela coisa de apontar: 'Falhaste ali naquela parte e não sei quê!' [grita]. Falamos muito entre nós. As chamadas redes sociais já não me apanham. São só impropérios e pessoas mais inteligentes do que eu, como o Trent Reznor [líder dos Nine Inch Nails], já disseram: 'Não quero mais esta gente a comentar se eu sou isto ou aquilo'. Portanto, resolveu-se no camarim com a produção. E surpreendentemente a primeira pessoa que apareceu no meu camarim foi o Mickael. Deu-me um abraço e disse para me acalmar. E depois veio a Marisa. Se fossem cínicos e maldosos, de acharem 'o gajo já se enterrou', não o teriam feito. Podia ter enfrentado aqui um grande antagonismo. Mas não senti nada disso.

Sente que se pôs a jeito para todas as críticas que recebeu?

Não. Foi um momento espontâneo, de grande estupidez. Mas não quero provocar ninguém. Há ali uma persona que toma conta do espectáculo. Num subterfúgio até podia pegar num balão e mostrar que não estou alcoolizado como as pessoas dizem. Mas qual é o grau de alcoólatra? Sou uma pop star, devia poder fazer o Californication! Ser apanhado com coca e 30 gajas, se fosse lá fora, se fosse o Justin Bieber, achariam bem. Como é o Reinito, é diferente. Como o Reinito disse 'sexy mother fucker', já tem de pedir desculpas à família da concorrente. E já pedi. Mas é uma canção que eu tenho e o que quis dizer foi que a rapariga fazia lembrar uma personagem dessa música. Mas nisto há uma família do Estoril que achou que eu tinha insultado a filha menor. Mas se as pessoas querem entrar nesta vida têm de ouvir de tudo ao entrar em palco. Não podemos ir para o palco a achar que vai ser só elogios… Tive essa experiência com a Manuela Moura Guedes, há muitos anos, quando produzimos o LP dela. Ela subia ao palco e dizia: 'Não imaginava que subir ao palco era levar com insultos!'.

Não foi a primeira vez que teve problemas em directos televisivos. A mais recente tinha sido durante a gala dos 50 anos da RTP, em que entrou em palco atrasado para um dueto com uma gravação do Toni de Matos.

Essa história foi das maiores traições… Estão a maquilhar-me e dizem que vamos para intervalo e que são dez minutos. Logo de seguida aparece a desgraçada da produtora a dizer que a RTP está a dar dez a zero à TVI e portanto não houve intervalo e já meteram o vídeo do meu dueto no ar. Desço as escadas a correr, entro no palco, cumprimento as pessoas e canto: 'Só nós dois é que sabemos, só nós dois e mais ninguém'. E a música acaba. Ficou um silêncio surreal no Coliseu. Não devia ter entrado e deixava-os pendurados. O Paulo de Carvalho, no dia a seguir, dizia-me que era uma injustiça porque estava tudo a gozar nos programas da manhã, a dizerem que o Reinito estava bêbedo ou que estava a olhar para as coristas e por isso é que não apareceu a tempo. E, mais uma vez, as pessoas que vêm ter connosco nestas situações são ines-peradas… Neste caso foi a apresentadora Merche Romero que chegou ao pé de mim e disse umas caralhadas em espanhol. E ainda tentou que eu fosse à festa, mas fui para o hotel chorar baba e ranho.

Sente-se persona non grata em alguns meios de comunicação?

Acho que as pessoas são um bocado ingratas comigo. Durante anos não entrava na RFM e não sei quê, sem ser tudo traduzido para hebraico. Sou amalucado, mas what you see is what you get e não tenho vergonha nenhuma disso. Se fosse noutro país teria oportunidade de fazer coisas um bocadinho mais criativas, mais crazy. Os meus heróis, os Oscar Wildes e essa gente, acabaram presos. Eu espero é não ir preso! Digo uns disparates na televisão, mas acho que isso ainda não é razão para ir preso. Mas está quase. Os GNR, durante quatro anos, não tocaram no Porto por eu ter posições antagónicas ao Dr. Rui Rio.

Como assim?

Por exemplo, quando foram os 100 anos da Universidade do Porto convidaram-nos para tocar num cocktail ao fim da tarde. Mas é muito fácil uma câmara inviabilizar porque não dá licença de segurança… Os burocratas são terríveis. Entre o neoliberalismo e o comunismo fundamentalista não há diferença de processos. São pessoas que não lidam com o antagonismo.

Acha que esta história no The Voice pode condicionar o seu futuro televisivo?

Sim. E já disse que, se não ganhar, ponho o meu lugar à disposição como o Paulo Bento devia ter feito. [risos]
Ao mesmo tempo isto traz mais visibilidade para a banda?
Temos os espectáculos cheiíssimos, mas os outros moços sofrem porque há gente que acha que o homem, eu, posso ser instável. Se quiserem até posso mudar de nome e passar a Rei Vinho da Casa – Amy Wine House. [risos]

O que o fez aceitar voltar a ser mentor?

Vaidade. [risos] E o facto de ter ganho. Disseram-me que fazia sentido voltar. Não tenho grande experiência porque não me deixam, porque sou disparatado e incendiário, mas nasci com a televisão [reproduz o antigo hino de abertura de emissão da RTP] e adoro.

Como é que alguém que sempre foi contracorrente aceita participar em programas ditos mainstream?

Devemos entrar nas estruturas e subvertê-las por dentro! Se vou à festa do T-Clube da mesma maneira que vou à festa dos miúdos do hip hop, e sou admitido nuns e noutros, para mim é espionagem pura. É o que faço. Acho que sou, não um 007, mas um 004,5. [risos]

O rock sempre teve um papel contestatário, mas o Zé Pedro dos Xutos virou figura das revistas de social, o Rui é mentor no The Voice… Os mais contestatários abraçaram o sistema?

Sim, claro. Hoje em dia quero fazer parte do sistema, quero fazer parte da sociedade. Não renego isso. É um orgulho assistir ao The Voice Portugal, que tem uma banda e vozes ao vivo. E saber que cerca de um milhão de pessoas está a ver.

Mas é um paradoxo: por um lado quer fazer parte do sistema, por outro procura boicotá-lo…

É espontâneo. O sistema já não é aquela coisa do antigamente. O rock and roll, para ser sincero, é a única coisa que nos afasta do chamado pimba. Porque os nossos colegas chamados pimba são tão ou mais competentes em tudo o que fazem. A minha única luta é contra o playback. Quantos programas hoje em dia têm música ao vivo? O que nos afasta do chamado pimba do mau gosto é a verdade.

Vê-se como o Mick Jagger, ainda em palco aos 71 anos?

Se pudesse… Mas a correr menos! Acho tão engraçado, porque os outros estão em palco e parece que estão com um olhar que é 'onde é que anda aquele gajo?'. E ele anda ali a fazer piscinas de um lado para o outro. As pessoas perguntam como é que os Stones ainda tocam, mas eles podem fazer aquilo até aos 80 [começa a imitar o riff de uma guitarra] porque só há um que não pára de correr e é o Mick, um tipo divertidíssimo que amo. Como diz o meu grande amigo Alexandre Melo, são velocidades paralelas e concorrentes. Ele está na fast lane. Isto é uma vida fantástica. Enquanto o deixarem, enquanto não tiver artroses, enquanto tiver voz e potência, um músico nunca quer deixar de ser músico.

É em busca dessa mesma energia do MIck Jagger que começou a recorrer às medicinas ditas alternativas?

Sim, sim. Fazer uma hora e meia de espectáculo com 60 anos é alta competição. Metade da selecção nacional não aguentou… Faço acupunctura e homeopatia porque me faz muito melhor. Recorro o mínimo possível a antibióticos. Nos últimos tempos não tenho tido afonias, por exemplo. E não é incompatível com a única coisa que consumo, que é a vinhaça. Aliás, aqui tenho uma queixa que é o vinho de pacote do refeitório aqui do estúdio. Mas nós trazemos a nossa garrafa. Não há nada como um copito de vinho para a pessoa ficar animada. É bom ir para palco com faces rosadas.

E ajuda a manter o visual jovem que sempre disse ser algo que o preocupa?

Isso e a erecção. Assistida. [risos]

Só falta dizer que recorre a substâncias como o Viagra…

Não. Já experimentei, mas não gostei. Experimentei numa viagem ao México, mas achei muito embaraçoso estar assim o dia inteiro. Aquilo não passava nem com duches porque a água também era quentinha. E os meus amigos gozavam a dizer para irmos comer uma lagosta e eu só dizia que ia era para a praia nadar de costas! [gargalhadas] 

raquel.carrilho@sol.pt

vitor.rainho@sol.pt