Almadraba atuneira

A Macal nunca me falha, mas pede-me gentilmente momentos de frescura por causa do calor. Mergulho nas águas doces do Pego do Inferno, em Tavira, e visito alguns locais emblemáticos da pesca do atum. E, já que estou no Sotavento Algarvio, impõe-se uma viagem até Vila Real de Santo António, a cidade mais iluminista de…

O termómetro transpira 36 graus. A minha cabeça ferve. Tenho a cara queimada do sol. As alpercatas marcam-me o pé bronzeado. Os braços estão dourados como manda a lei no Algarve. Tenho uma camisa às flores. Pareço um americano reformado num cruzeiro – discretíssimo. 

A Macal, se fosse um cão, ia com a língua de fora. Por falar nisso, sou perseguido por dois maravilhosos rafeiros. Daqueles que saem desembestados para o meio da estrada e ladram a tudo o que mexe. Falo-vos daqueles que provocam quedas e mordem. Depois os donos não se responsabilizam.

Fujo por um trilho em tuvenan e deixo os meus ‘amigos’ para trás. Desaparecem no meu retrovisor envoltos numa nuvem branca de pó.

O laranjal que me cerca conduz-me ao Pego do Inferno, perto de Tavira. Esta cascata com três metros rasga a formação cársica que lhe dá altura. Conta a prodigiosa imaginação do povo que um dia uma carroça com os seus bois e tripulantes se despenhou nesta lagoa cor de azeitona e desapareceu. Afinal, a profundidade vai desde a água pelo joelho até aos sete metros. Pena não ter sido suficiente para engolir o incêndio que devastou esta região em 2012.

Próxima paragem: atum. Estou a caminho de Pedras d’El Rei. Muito perto de Tavira e da capital do polvo, Santa Luzia. Atravesso este aldeamento turístico de habitações alvas e catitas, com famílias em banhos na piscina e um aroma a relva bem tratada. Há quem chame a este género beach resort. Para ver o mar tenho de apanhar um comboio que me leva à praia do Barril. Podia ir a pé. É um quilómetro belíssimo de se percorrer. Sento-me numa das carruagens com a mesma felicidade dos meninos que vão aqui com os papás. Noutros tempos este comboiozinho servia a armação de pesca do atum instalada aqui.

A areia está tão quente que não consigo andar descalço. Fervem as âncoras alinhadas nas dunas a seco. As primaveras passam por estes 170 esqueletos que se vão desfazendo em cada sol que passa. É urgente cuidar deles. 
Terá sido em 1841 que foi constituída a armação do Barril, também conhecida por ‘Três Irmãos’. Construíram habitações, escritórios, escolas, armazéns, barbearia e guarda fiscal para as famílias que aqui se instalaram para se fazerem ao mar.

O atum é um peixe migratório que todos os anos parte do Atlântico e atravessa o Mediterrâneo até chegar ao Mar Negro para desovar. Era nesta travessia que o capturavam. As âncoras serviam para fixar as redes no fundo do mar. Eram quilómetros de rede, negra por causa do alcatrão que a impermeabilizava. Entretanto, lançavam-se milhares de bóias para cercar o atum, que é tímido e assustadiço. Ao fugir, era apanhado no ‘copo’, uma espécie de armadilha de onde já não podia voltar. Iniciava-se então uma ‘tourada de mar’. Os punhos cerrados dos pescadores seguravam o arpéu que puxava o atum para fora das redes, fazendo-o sangrar como gente. O vermelho do seu sangue diluía-se na água como as minhas aguarelas. u

Hoje resta este cemitério e também as antigas infra-estruturas transformadas em restaurantes e num quiosque no qual comprei o SOL.

Sigo viagem na Macal. Com um olho na Ria Formosa e outro na estrada, chego a Santa Luzia. Aqui reina o polvo nas ementas das esplanadas viradas para os barcos coloridos. O pôr-do-sol é majestoso por causa do seu reflexo nos espelhos de água subtis, que surgem na areia fina durante a maré baixa. Dá vontade de caminhar sobre eles. Aqui usavam-se chatas, umas embarcações planas para transportar pessoas, animais e mercadorias até à linha de comboio. Caso se tratasse de mercadorias de grande dimensão, o transporte era feito pelos calões (barcos grandes) que asseguravam a ligação entre Tavira e a Armação.

 

Continuo pela estrada fora até Tavira. Entretanto são 17 horas. Ainda estou a tempo de ir ao Hotel Vila Galé Albacora. Entro gratuitamente para conhecer o museu da pesca do atum. É modesto mas honesto. Aqui aprendo mais sobre o dia-a-dia, materiais e técnicas da faina. Tudo isto exposto numa pequena sala aberta ao público. Está inserido na recuperação do antigo arraial Ferreira Neto, no qual residiam famílias que viviam da ‘carne do mar’. O arraial mantém-se impecavelmente restaurado para proporcionar uma boa estadia aos clientes deste hotel. Eis um exemplo paradigmático da boa relação das entidades privadas com o património público. Parece que vejo tudo a preto e branco, ao som da ‘Sagração da Primavera’ de Stravinsky. Foi esta a banda sonora utilizada pelo cineasta António Campos quando realizou aqui Almadraba Atuneira, uma obra-prima de 1961. Um dos melhores exemplos do cinema etnográfico de salvaguarda em Portugal. Parecia que este leiriense estava a prever o fim do atum. Isso aconteceu uma década depois.

No dia seguinte vou até Cacela Velha. Aproveito para dar uns mergulhos e tirar a barriga de misérias. Já tinha visto muitas reportagens sobre as ostras que se comem por aqui, mas confesso que nunca as tinha provado. Sento-me na mesa e aqui vai disto. 

Dali parto para Vila Real de Santo António. Chegar aqui é viajar até aos tempos do Marquês de Pombal. Até ao terramoto de 1755. Assim como Lisboa foi reconstruída das cinzas, Vila Real de Santo António tornou-se o melhor exemplo do Iluminismo em Portugal. Foi edificada de raiz sobre um terreno plano, ideal para passear de bicicleta – embora tenha visto muito poucas.

Toda a vila foi pensada ao detalhe, com grande racionalidade, cumprindo dois objectivos: controlo da captura e transformação do pescado. As ruas eram inteligentemente organizadas. Num lado o armazenamento, noutro a transformação, e ao longo dos quarteirões estavam implementados os serviços necessários para a vida desta cidade industrial. É aqui que desagua o Guadiana, que terá sido a porta de entrada de milhares de barcos que subiam este rio até às entranhas do Alentejo.

Há muito que sinto o desejo de comer atum. Não quero em lata, nem uma posta sobre a mesa. Desejo que seja novidade para mim. É precisamente numa tasca bem no centro desta cidade raiana que me falam da muxama. «Come-se às fatias fininhas e com cerveja fresca. Ui! Isso é um pitéu!». Só o tom da sugestão é meia refeição para mim.
A muxama são lombos de atum seco em sal e depois em ar quente. Antes era o ar da região, agora é o das câmaras próprias para este efeito. Parece presunto, mas do mar. O seu sabor intenso é óptimo para quem gosta de enriquecer a sua ementa.

Vou optar por não divulgar o local onde a comprei. Viajar implica procurar e encontrar. Garanto-vos que vão descobrir este manjar que já era apreciado pelos fenícios. Bom proveito!