O vento que embala o extremo sudoeste

Batem as 17h00 no relógio da torre sineira da igreja matriz de Vila do Bispo. O vento despenteia-me. Hoje estou com sorte, mas parece que a maresia do   Atlântico vagueia por estas ruas. Dirijo-me ao hotel para reservar quarto. Com meia dúzia de palavras trocadas com a senhora da recepção descubro ligações familiares entre a…

“Isto já esteve melhor. Precisa de mais turistas. Esta é a terra dos perceves. São os melhores”, diz-me a senhora. “Antigamente, esta rua que vê ali fora estava cheia de lojas. Hoje está tudo fechado”.

A conversa vai-se desfiando e chega às décadas em que muitas famílias tinham pelo menos um contrabandista para matar a fome dos seus meninos. “Muitos foram presos, coitados”.

Meto o pé no pedal e a mota pega à primeira. Cospe a nuvem de fumo da praxe e lá vou eu.  A Macal parece ansiosa para chegar ao extremo sudoeste da Europa. Falo-vos da ponta de Sagres. Levo comigo uma bandeira de Portugal e um orgulho que me parece provinciano. O facto de o meu país ser uma ponta do continente é algo que infelizmente não muda as nossas vidas.

Os pescadores locais contam-me as suas histórias de vida. São como os antigos navegadores, mas em vez de procurarem novas terras, vão atrás do peixe que a UE permite pescar.

A recta para chegar à ponta de Sagres é enquadrada pelo  mar que lambe os pés do promontório que nos faz sentir muito pequenos. É maravilhoso este canto do meu país. Vejo nele um simbolismo que até me faz perder alguma racionalidade. Cresci a acreditar que era daqui que partiam as caravelas pelo mar fora. Rapidamente concluo que era impossível. As condições naturais deste lugar não o permitiriam.

A presença de dezenas de turistas de todos os recantos do globo é muito evidente. Juntam-se à espera do pôr-do-sol. Vive-se um momento de selfies em massa para mais tarde recordar. O sol é o elemento comum às milhares de fotos tiradas. Registo todos os detalhes do farol que não tarda a desenhar um feixe de luz no ar para assinalar a existência deste prolongamento de terra.

Parece que o vento é mesmo frequente por estas bandas. Sopra forte sobre os turistas, que ficam com penteados insólitos que lhes vão garantir  dezenas de ‘likes’ nas suas páginas do Facebook.

Enquadro a Macal para registar o momento da bandeira e acontece o inesperado. A mota tomba e parte a manete da embraiagem. Não deixa de andar mas complica-me a viagem. Até porque a noite já está pronta para entrar em cena. Daria para continuar a viagem, mas isso não fazia bem à saúde do motor, nem a minha segurança estava totalmente garantida.  A esta hora é u impossível encontrar uma oficina aberta. Por isso opto por reservar um quarto para esta noite e depois logo se vê.

Depois de bem jantado, vou dar um passeio. Vejo ao longe um conjunto de fachadas alinhadas e cheias de cor. As luzes rasantes que as iluminam dizem-me para entrar: “Entra porque gostas bem disto. Somos bares onde te vais divertir”.

Escolho o que mais sobressai à vista, o Dromedário, e sento-me ao balcão. Peço uma cerveja com o nome da ponta que está aqui ao lado e lanço chama num charuto enquanto meto conversa com a barmaid. “As noites aqui são muito animadas. Durante o Verão o pessoal junta-se ali fora. É um mar de gente”, diz-me ela em inglês puro de London. Sagres é muito procurada por estrangeiros, até mesmo para trabalhar nas férias.

No dia seguinte acordo em sobressalto. A minha boca está seca. Estranho. Se bebi tantas cervejas, como é que ainda tenho sede? Desta vez é a água que me desperta para continuar.

Meto-me  a caminho de Lagos à procura de uma oficina. Estaciono mesmo em frente ao forte da cidade. Era daqui, e não de Sagres, que partiam as famosas caravelas que tão grande império desenharam nos mapas do nosso reino. Lagos foi um dos mercados de escravos mais importantes da Europa. A partir de 1444, as razias e as trocas de pessoas por terras da costa ocidental de África eram o ‘pão nosso’ deste período de ouro manchado de sangue. Não é por acaso que a capital da Nigéria se chama Lagos.

À medida que caminho pelas ruas em busca do salvador da minha mota, surge um confronto de gerações. A minha e a dos árabes. As ruas são estreitas, labirínticas e brancas, mas pontualmente coloridas por graffitis que a tornam uma cidade destes tempos. Estas obras de arte de rua nascem no contexto da ARTURb, comandada pela LAC (Laboratório de Actividades Criativas).

Sou ofuscado por pinturas de Aryz (Espanha), Roa (Bélgica), Bezt (Polónia), C215 ( França) e tantos outros que contribuíram para o património artístico desta cidade.

“Quem o pode ajudar é o Ilídio. A oficina dele é em Chinicato. Fica mesmo aqui ao lado”, diz-me um dos mecânicos daqui.

Chego  à oficina que me resolve o problema. As duas horas que ali passo não se devem à complexidade do arranjo mas sim à longa conversa que travo com o mecânico que passou a ser meu amigo. Não por causa da oferta da manete, mas por ser uma pessoa dócil. “Também tenho uma mota das antigas. Já fui até Vigo com o pessoal daqui. Temos um grupo que também se faz à estrada”.

Aproxima-se a hora do regresso. Parto em direcção a Vila do Bispo. Recordo que tenho lá um quarto reservado e o meu amigo está prestes a chegar. Na mochila levo uma sacada de caracóis oferecida pelo meu salvador de manetes. A questão é que vêm vivinhos da silva. Estou em viagem. Não tenho cozinha. Não sei como os vou preparar.

Chego cheio de apetite. Em frente ao meu hotel está o famoso restaurante Café Correia. Sento-me, depois um valente abraço de boas-vindas ao meu amigo. Entra em palco o polvo e umas lulas em tomate de comer e chorar por mais. Ofereço os caracóis à senhora Lilita, que me serve, e ao senhor Correia, que toma conta dos tachos. Dividimos esta oferta. Como metade e os outros entrego-os a este amoroso casal, que saberá que destino dar-lhes. São pessoas como estas, amigos esperados e inesperados, que têm dado alma à minha viagem.