Catherine Merridale: ‘Ver o Kremlin pela primeira vez foi muito romântico’

Professora de História Contemporânea na Universidade de Londres, Catherine Merridale visitou pela primeira vez Moscovo, “uma cidade um pouco assustadora”, em 1982. Mais de três décadas depois, em Fortaleza Vermelha – O coração secreto da história da Rússia (Temas & Debates/ Círculo de Leitores) usa o Kremlin como pano de fundo para contar a história…

Catherine Merridale: ‘Ver o Kremlin pela primeira vez foi muito romântico’

Quais são as principais dificuldades com que um historiador ocidental se depara ao investigar na Rússia?

No meu caso, uma das maiores dificuldades foi obter acesso ao próprio Kremlin. Implica enviar uma candidatura a pedir autorização. Isso levou-me dois anos.

Dois anos?

Não sei por que demorou tanto, mas demorou. Penso que talvez fosse por ter feito o pedido às pessoas erradas. Assim que pedi à pessoa certa recebi a autorização. A maneira como a Rússia funciona é interessante: uma vez concedida a autorização, tudo se torna fácil e as pessoas são muito prestáveis. Mas primeiro é preciso entrar.

Disse que andou dois anos a pedir autorização às pessoas erradas e que, quando perguntou à pessoa certa, as portas do Kremlin se abriram. Quem são as pessoas erradas e quem é a pessoa certa?

As pessoas erradas – nesta situação específica, claro – são aqueles que trabalham no Kremlin com responsabilidades no Governo. Estão sempre demasiado ocupados para os historiadores. A pessoa certa é a directora do museu do Kremlin.

E depois tudo se torna simples?

Bom, para um estrangeiro, trabalhar na Rússia nunca é completamente simples [risos]. Entre outras dificuldades, é preciso convencer as pessoas de que estamos genuinamente interessados na sua História. Os russos não conseguem entender que um estrangeiro possa querer estudar estas coisas.

Desconfiavam de si?

É possível. Eu era jornalista e os historiadores russos não têm grande opinião dos jornalistas – peço desculpa porque sei que é a sua profissão. Talvez pensem que andam à procura de escândalos sensacionalistas e não de verdadeiros factos históricos.

Fala russo?

Sim, fluentemente. Claro que se não conseguisse ler e falar russo isso seria outro problema. A maneira de fazer com que as coisas funcionem é falar com as pessoas e mostrar-lhes o nosso interesse. Sem se falar russo a relação seria muito artificial.

Pode falar-me da primeira vez que foi a Moscovo e da emoção de ver o Kremlin?

Oh! Foi há muito tempo. Eu era estudante e vivia-se ainda sob o regime soviético. Os procedimentos de segurança no aeroporto eram desagradáveis, tudo era diferente, estranho e burocrático. Moscovo é uma cidade um pouco assustadora e eu estava à espera que me acontecesse algo de terrível. Estávamos no Inverno e havia muita neve e gelo, mas não muitos transportes. Poucos carros circulavam nas ruas. E de repente, no centro da cidade, ergue-se esta coisa espectacular, colorida, brilhante, linda, que não se parecia com nada que eu alguma vez tivesse visto. Catedrais com cúpulas douradas, umas muralhas vermelhas com ameias extraordinárias. Foi um choque. E muito romântico.

Em que ano foi isso?

Em 1982. Depois voltei para fazer o doutoramento em 1986, o primeiro ano de Gorbachov e da Perestroika, o que foi emocionante. Trabalhei na Biblioteca Lenine, que fica em frente ao Kremlin, ou seja, a minha secretária tinha uma janela com vista para o Kremlin. Na altura não estava a estudar nada relacionado com a história do monumento, mas era maravilhoso olhar pela janela e ver todo aquele esplendor de ouro através da neve ou da neblina.

Deve ter sido inspirador.

Sim, a paisagem que se via pela janela era sem dúvida mais inspiradora do que as pessoas a dormir à minha volta. Na Biblioteca Lenine eles põem os estrangeiros num sítio a que chamam 'sala de leitura dos professores'. Estes professores são senhores de idade – extremamente velhos. Entravam, sentavam-se, por vezes tiravam as dentaduras postiças, colocavam-nas na secretária, e punham-se a dormir.

Depois viu o Kremlin por dentro. Correspondeu à imagem com que tinha ficado do exterior, ou foi surpreendida?

Tive muitas surpresas. Quando comecei este projecto, uma pessoa que tinha estudado a história do Kremlin, um arquitecto que trabalhou para o Governo russo, deu-me um mapa do complexo. Ao início eu não conseguia encontrar nada, porque há muitas cúpulas e torres parecidas. Foi preciso todo o tempo que passei a escrever o livro para me orientar, mas hoje já sei onde está cada coisa. Mas, mais importante do que isso, sei como os edifícios são por dentro e como funcionam. Adquirir este grau de familiaridade é uma tarefa que requer anos. Agora olho para o Kremlin como um amigo – não o meu melhor amigo, porque continua a ser um lugar sinistro – mas pelo menos como alguém que conheço. E foi um prazer ficar a conhecê-lo melhor.

Usou uma palavra forte para adjectivar o Kremlin: 'sinistro'. Se estas paredes falassem, qual seria o episódio mais sombrio que nos contariam?

Boa pergunta! As muralhas actuais, que se vêem hoje, foram construídas no século XV. De outra forma, diria que o episódio mais sombrio foi a invasão mongol, no século XIII, quando Moscovo é pilhada e pessoas são cortadas às postas e queimadas vivas. Esse terá sido o momento mais negro da história do Kremlin. Mas em relação às muralhas de hoje, penso que discutiriam qual episódio teria sido o pior: Ivan o Terrível massacrando pessoas na Praça Vermelha, Pedro o Grande massacrando pessoas na Praça Vermelha, Napoleão e o tremendo incêndio de Moscovo. Todos esses acontecimentos disputariam o primeiro lugar.

Tolstoi conta em Guerra e Paz que quando as tropas de Napoleão chegaram a Moscovo, encontraram a cidade esvaziada. Todas as principais figuras a tinham abandonado. Pensa que foi esta deslocação que impediu os franceses de conquistar a Rússia?

Não acho que Napoleão pudesse mesmo ter conquistado a Rússia, não estava ao alcance do seu exército. Agora, penso que foi a sua decisão de permanecer em Moscovo que determinou a forma catastrófica como acabou por ser derrotado. A sua fúria ao ver o incêndio que devastou a cidade e a obstinação de ficar em Moscovo e obrigar o imperador a render-se fizeram-no desperdiçar seis semanas preciosas no Outono de 1812, quando podia ter regressado a França em condições favoráveis. As tropas ficaram sem mantimentos, e quando se viram obrigadas a retirar já era Inverno, o que tornou tudo tão terrível. Em certa medida o Kremlin foi responsável por isto, uma vez que seduziu Napoleão e o manteve em Moscovo por mais tempo do que ele deveria ter ficado.

No seu livro fala de famílias que tinham as suas casas no interior da muralha. Ainda há pessoas a viver no Kremlin?

Não, o que é uma pena, porque tem belos apartamentos, que seriam ideais para os administradores do Kremlin. Mas ninguém vive lá. E Putin tem um projecto para transformar a totalidade do Kremlin num museu, o que fará com que até as instalações dos administradores tenham de sair dali.

Não seria opressivo viver no interior da muralha?

Enquanto estava a escrever o livro entrevistei bastantes pessoas que viveram no Kremlin quando eram crianças ou jovens, e todas dizem que sim: era opressivo, muito frio e desumano. Mas penso que isso se deve a terem vivido lá na era de Estaline. Viver no Kremlin no século XVIII ou XIX devia ser uma experiência muito interessante, especialmente para quem era bisbilhoteiro, porque se via e ouvia dizer muita coisa.

Que papel desempenhou a fortaleza durante a revolução bolchevique de 1917?

Na revolução o Kremlin foi ocupado por forças anti-bolcheviques. Mas isso contribuiu para tornar a revolução em Moscovo particularmente trágica. Houve mais mortos em Moscovo do que em Petrogrado. Depois de sitiado e bombardeado, o Kremlin foi capturado, o que representou um grande momento para os bolcheviques, que viram a resistência a colapsar. Uma vez capturado pelos bolcheviques, a questão era o que fazer com ele, até porque muitos edifícios estavam destruídos. Usaram-no como cofre-forte para objectos valiosos durante os primeiros meses. Curiosamente, também pensaram transformá-lo em museu e nomearam Kasimir Malevitch, o artista, o seu curador (mas por um período muito curto, depois puseram outro artista a mandar). Foi só na Primavera de 1918 que Lenine e a sua comitiva se instalaram e fizeram do Kremlin o seu baluarte, a capital do poder bolchevique.

Acha que o Kremlin é uma boa metáfora do poder autocrático russo?

Ele mostra, por um lado, como o poder autocrático gosta de se exibir e, por outro, como fica encurralado. Ao levantar as muralhas, o poder autocrático dá um sinal para o exterior: 'Podemos manter-vos à distância e podemos fazer dentro das muralhas o que nos apetecer'. Mas ao mesmo tempo exclui-se do mundo, deixa de estar a par do que se passa lá fora. Resumindo: uma muralha deste tipo tanto é uma bela vitrina do poder como uma armadilha para ele.

Recebeu reacções vindas da Rússia? Sabe o que os russos pensam do seu livro?

Recebi diferentes tipos de reacções. As mais gratificantes foram de especialistas na arquitectura do Kremlin, que trabalham lá, são funcionários do edifício. E também de especialistas de história da arte russa, que sabem mais do que eu alguma vez saberei. Enviei exemplares do meu livro para algumas destas pessoas com um enorme nó na garganta à espera da reacção, e foram muito simpáticos. Alguns escritores de Moscovo disseram-me que ficaram impressionados com o que aprenderam. Ao mesmo tempo, se vir na Amazon, alguns russos puseram comentários a dizer que eu devo ter sido paga pela CIA, o que – aproveito esta oportunidade para lhe dizer – nunca fui [risos]. Nunca, nunca, nunca! Duvido que a CIA saiba sequer quem eu sou.

jose.c.saraiva@sol.pt