Mau feitio

O português é pródigo em eufemismos. Curiosamente, estas expressões de aparência caridosa não têm como móbil o bem maior nem o mal menor: apenas a insinuação insidiosa, a suspeita levianamente desenhada e o ataque libidinosamente enviesado, artes em que este mimoso jardim europeu se vem especializando desde há muitos séculos.

Talvez esse modo de ser manso e impiedoso explique a longevidade da pátria, mas é também a causa do seu incurável emperramento.

A morte de Emídio Rangel trouxe-lhe aquilo que mais falta fez aos últimos doze anos da sua vida: a memória alheia. Encontrei-o há cerca de um ano, amargurado, desempregado e descrente das suas próprias capacidades: «Ao fim de tantos anos sem uma proposta de trabalho uma pessoa começa a pensar que, se calhar, não tem mesmo jeito para nada», disse-me. Só as televisões e rádios angolanas lhe iam pedindo umas consultorias; era isso que, apesar de tudo, o impedia de desesperar. Agora que morreu e não voltará a assombrar nada nem ninguém, eleva-se, com um suspiro de alívio, o coro terreno da boa vontade: ele era desbravador, pioneiro, criativo, excelentíssimo, amén. 

Lastimo a vitória do Big Brother que foi o início da sua desgraça televisiva – a morte de Rangel sinaliza o fim de um tempo em que o populismo e a degradação da ética e do gosto do público ainda conheciam regras e limites. Felizmente ainda pude agradecer-lhe a criação do modelo da TSF e, de um modo mais pessoal, o entusiasmo com que aceitou de imediato a proposta de programa de entrevistas que, mal o conhecendo, lhe fiz, o apoio e a extraordinária equipa de produção e realização que me concedeu, na SIC, ainda por cima nesses idos de 1997 em que eu estava grávida e muito desempregada. Tivesse eu tido conhecimento da sua doença – de que não me falou – e do seu internamento, teria pelo menos ido visitá-lo nestes últimos meses; sou muito mais dada a visitar vivos em hospitais do que mortos em funerais. Feitios. 

Chocou-me encontrar, entre os cânticos fúnebres a este esquecido mestre da Comunicação, a expressão ‘mau feitio’. Esta expressão é um rolo compressor que igualiza bêbedos e corajosos, infâmias e heroísmos. Rangel tinha mau feitio? Como e porquê? Porque dizia frontalmente o que pensava? Porque defendia aquilo em que acreditava? Há que explicar: o mau feitio de um cobarde que bate na mulher ou despreza pai e mãe não é o mesmo de um valente que defende as suas ideias. Em Portugal, mau-feitio é o sinónimo sonso de ‘personalidade própria’, coisa pouco apreciada porque difícil de controlar.

Inúmeras vezes oiço dizer que fulano tem ‘mau-feitio’, ‘exagera’, ou ‘não é de confiança’. Concluo pelo mau-feitio e exagero de quem, isso sim, fala prestamente mal dos outros. O que vejo aparecer atrás destes genéricos suaves do linchamento é a cauda felpuda da inveja. Ou, o que mais me assusta, o desejo de confundir justos e pecadores, incompetentes e cumpridores. Para honrar o nobre desígnio nacional da rolha, que flutua em qualquer água, ao sabor da corrente. Ah, país corticeiro. 

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