As colinas sensuais de Monchique

“Iiiiiiiii! Iiiiiiiiii!!! Iiiiiiii!!!!”. Esta é a banda sonora do ‘filme’ de faca e alguidar a que assisto. O suíno solta os últimos grunhidos de vida. Faz-se ouvir na serra de Monchique de vale em vale. O animal será alimento para o ano inteiro.

A familiaridade com esta morte sangrenta é enorme. Os meninos assistem ao momento com grande entusiasmo. Ele fará parte das suas memórias de infância. Eu também as tenho. Cresci numa aldeia do centro de Portugal. Por lá dão o mesmo destino aos porcos.

“Segura-o bem, Toino!”, diz o senhor Carlos, que mata um porco como quem anda de bicicleta. Ele empunha com firmeza uma faca de lâmina afiada. Espeta-a pela garganta adentro do animal até que ele jorre sangue para uma bacia. Depois é chamuscado, limpo e esventrado. As vísceras caem duma assentada. Fazem o mesmo barulho de um vómito a ser expelido com vontade. “Já está! Estava custoso”, diz-me o matador em tom heróico. Enquanto as mulheres lavam as tripas em água corrente, os homens desmancham o bicho aos pedaços.

Há copinhos por todo o lado. Uns cheios, outros vazios de aguardente de medronho que mata o bicho. 

Algumas moscas atordoadas procuram poisos gostosos. O almoço é arroz de bofe e cacholas (semelhante à cabidela).

Sentamo-nos ao comprido da mesa improvisada no quintal. Partilhamos histórias de outras matanças e andanças da vida. Falamos mais alto que o outro para nos fazermos ouvir. Soa a caos mas tudo se organiza no brinde de um vinho em copo.

O porco é aproveitado dos pés à cabeça. É desta tradição que derivam os famosos enchidos de Monchique. Hoje, existem fábricas especializadas nesta produção.

As farinheiras, as morcelas, as chouriças e os 'molhos' vão surgindo à medida que as mulheres enchem as tripas do porco. Depois são cozidas paulatinamente até ficarem no ponto. Provei também os legumes guisados com o coração do porco e o 'fregeneco', que é o porco frito em banha, conhecido por 'tachadéu', 'friginada'  ou 'fritada' na Alta Estremadura. Nomes diferentes com a mesma essência. Não satisfeito, ainda emborquei a sopa do cozido. Couves mergulhadas num caldo a ferver com partes do porco. Concluindo, levei daqui mais peso para a Macal transportar.

Foram dois dias de garfo e faca na mão.

Arranco até ao centro de Monchique. As casas estão dispostas em escadaria ao longo do declive da serra. A frescura que se faz sentir nestas paisagens inspira-nos a dizer que é a 'Sintra do Algarve'. As camélias, as acácias e a rosa albardeira dão cor a esta mancha verde. As sombras dos pinheiros, medronheiros e castanheiros puxam-me uma lágrima. Um fósforo pode transformar tudo isto em carvão.

Sento-me numa esplanada no centro da vila e peço uma bebida típica. Tento fazer mais umas perguntas sobre esta zona e respondem-me: “Tenho a melosa. É feita de mel e aguardente de medronho. É bom. Desculpe-me mas não posso ajudá-lo agora porque tenho aqui muitos turistas estrangeiros para servir”.

Bebo um poema de Américo Telo: “Melosa és muito famosa mas/ andaste sempre a enganar-me/ de braço dado com o mel e/ com o medronho a embebedar-me”.

O próximo destino encontra-se a 902 metros de altitude. Puxo pela Macal e ela dá sinais de grande esforço para chegar ao cume de Fóia. É sempre a subir. Chego ao ponto mais alto do Algarve. Bate-me uma brisa dos pés à cabeça com aromas do mar e da serra. Daqui consigo fotografar Algarve e Alentejo. 

Para onde vou a seguir? Posto de combustível. Fiquei sem gasolina e talvez a mota esteja chateada comigo. Ela deu tudo o que tinha para me proporcionar este momento. Estico o braço com o polegar hasteado. Surge-me uma abençoada família que insiste em levar-me às bombas mais próximas. De carro, claro! “O senhor é o rapaz da Macal?! Gostamos tanto das suas aventuras. Deve conhecer gente muito interessante”. Falam para mim em coro e eu fico muito feliz por me reconhecerem.

Num jerrican trouxe cinco litros de gasolina 95. “Isso é para uma Macal? Leve assim e depois meta lá para dentro uma bisnaga de óleo que lhe custa 2 euros e 70”, diz-me o gasolineiro.

Lá fui eu dar de 'beber' à minha menina. Já me parecia mais bem disposta e de motor arrefecido. Pegou à primeira. “Boa viagem, Gaspar!” – diz-me a família benfiquista em coro. No retrovisor abanava um galhardete do clube das águias. No vidro de trás, a filha de sete anos despede-se com um boné vermelho SLB na cabeça. Que bom partilhar momentos com gente do mesmo clube. Obrigado pela boleia.

Faço sucessivas paragens ao longo das três freguesias que constituem o concelho (Alferce, Marmelete e Monchique). Tiro fotos e faço aguarelas. A vistas são soberbas. Se Lisboa tem sete colinas, a serra de Monchique é um harém de seios perfeitos. Os verdes da vegetação variam sensualmente até se esbaterem no horizonte, bem longe dos olhos, mas perto do coração. A frescura visual adensa-se nas termas de Monchique. É coisa de reis e rainhas: D. João II banhou-se nestas águas para se curar. São bicarbonatadas, sódicas e ricas em flúor. Ideais para problemas respiratórios e afecções músculo-esqueléticas. Não é sítio apenas para velhos. Eu fui, provei e adorei.

Dois dias depois vou para a Barragem da Bravura, que fica à saída da serra, já no concelho de Lagos. Apetece-me estar sozinho para escrever esta crónica com os pés de molho. A temperatura está óptima. A solidão aconchega-me. Sinto-me inspirado para transformar em palavras o carinho que tenho pelo leitor. Desejo que sinta em cada letra a emoção que sai da ponta dos meus dedos. Amanhã volto à estrada para continuar a partilhar Portugal.