O português que lidera o escutismo mundial

Entrou para o escutismo aos 13 anos, num agrupamento na Figueira da Foz, pela mão dos amigos e à procura de aventura. Desses tempos recorda os acampamentos e as subidas à serra mas também a sede, local onde os escuteiros se reuniam diariamente, uma espécie de refúgio onde se podia brincar, sonhar, ser livre. Hoje,…

A primeira pergunta é talvez a mais difícil. Como tem tempo para tudo?

Não durmo muito… Tento gerir o melhor possível. E a verdade é que este compromisso voluntário pode ser gerido de forma relativamente flexível. Ser professor dá-me alguma flexibilidade. No Comité, cada um tem vários compromissos ao mesmo tempo. Mas não digo que, de vez em quando, não haja compromissos que ficam para trás. Nomeadamente a família, que é sempre aquela que é dada como adquirida, e que tem de ter uma enorme paciência para suportar esta vida. 

Põe ferias para viajar?

Sim. Viajo 12 a 15 vezes por ano. Tento concentrar as aulas em alguns dias para depois ter mais dias disponíveis. Às vezes vou à sexta e volto ao domingo. Era assim que fazia no Comité Europeu [onde esteve antes de chegar ao Mundial]. Agora é mais difícil porque não dá para ir à Austrália ao fim-de -semana. É uma ginástica muito grande.

Mas já fazia essa ginástica enquanto era apenas dirigente escutista cá em Portugal?

Sim, claro. Costumo dizer que um dirigente a nível local e que seja comprometido, tem tanto ou mais trabalho do que eu. Tem de se empenhar todos os dias, chegar a casa à noite e pensar na actividade do fim-de-semana, tem de reunir com este e aquele, interagir com as pessoas da comunidade, etc.

E a família também é escuteira?

Fomos todos mas agora é só o meu filho. Conheci lá a minha mulher. As minhas filhas foram escuteiras até entrarem para a faculdade. Eu acabei por sair do agrupamento da Figueira da Foz em 2000, quando fui para a Junta Central [órgão máximo do Corpo Nacional de Escutas – CNE]. Hoje em dia, acompanho e colaboro quando me convidam. Mas já como dirigente europeu tive de me desligar do CNE, pois passei a representar o movimento escutista em geral.

O que recorda dos seus tempos de escuteiro é muito diferente do que se passa hoje?

Eu entrei aos 13 anos, fui puxado pelos amigos. E associo sempre essa fase a uma enorme sensação de liberdade. Nessa altura, ia-se aos escuteiros todos os dias. Era um sítio por onde se passava depois da escola. Era a sensação de ter um espaço nosso, onde tínhamos autoridade para fazer as nossas coisas. Foi isso que me atraiu: um espaço que podia chamar meu, onde podia planear, sonhar. As minhas filhas já não viveram isso. Penso que essa é uma grande diferença nos nossos dias e sei que isso é que cria e cimenta os laços entre as pessoas. Na altura, havia menos locais onde isso pudesse acontecer. Era uma espécie de refúgio onde havia um espírito de clube. Isso mudou. Mas o espírito comprometido, a diversão, o sentido de brio mantém-se nas actuais gerações.

O que recorda das actividades da altura?

As de ar livre são as que marcam mais, como as subidas à serra, os acampamentos, as descidas de rio. Havia muitas actividades destas, coisas que na altura não se faziam. Tudo o que respondia a essa sede de aventura nós gostávamos. Na altura não tinha a noção do seu impacto pedagógico. Era pura diversão, davam-nos um espaço e aproveitávamos o melhor que podíamos. 

Hoje há essas respostas fora do escutismo. O que continua a cativar os jovens ao ponto de o movimento continuar a crescer? 

Ao nível dos jovens adultos, o que os motiva é esse sentimento de comunhão e de pertença. E a possibilidade de ajudar os outros. No escutismo não se paga uma quota mensal e vai-se lá participar numa actividade. Há sentido de grupo e um certo cimento que se instala entre todos, que tem por base os valores da amizade, do serviço e da rectidão. Isto tem significado interior, as pessoas sentem-se melhor como pessoas.

O que leva um miúdo de 10 anos a entrar? 

As actividades, os amigos. O lado simbólico também cativa, como o uniforme.

Quando são os pais a decidir, o que sente que estes procuram para os seus filhos?

Alguns são encaminhados pelo psicológico. Acontece cada vez mais… O escutismo tem um grau de liberdade para cometer erros que não encontramos noutro sítio. Na escola, um pequeno erro é sancionado com notas piores, em casa isso também acontece. O escutismo é um ambiente mais seguro para se poder errar, sujar, para se poder fazer um buraco nas calças. Os pais reconhecem também muito a educação para os valores, que não é comum nas outras organizações. A maior prova do sucesso é quando os antigos escuteiros põem lá os filhos.    

Os jovens hoje em dia socializam muito pelas redes sociais, sem grande contacto pessoal. Como conseguem gerir isso e proporcionar convívios mais autênticos?

Através das actividades mais tradicionais, como o ir para o campo. Estar na natureza não é só importante pela questão ambiental. O estar num ambiente menos confortável põe os jovens perante um cenário de dificuldade em que eles têm de se ultrapassar. Não têm sofás, televisões, telemóveis, por isso constroem uma mesa, fazem uma fogueira e estão ali a cantar. São obstáculos que acabam por constituir estímulos e proporcionam a socialização. Claro que estas coisas continuam a existir mas há agrupamentos que fixam regras para a sua utilização. Trazem o telemóvel mas entregam-no ao chefe e têm uma hora para ligar aos pais.

Mas hoje, mais do que nunca, é preciso quase forçar essa relação?

É, não tenho dúvidas. Eles relacionam-se mas o contacto hoje é diferente. Têm dois mil amigos no Facebook mas não trabalham com eles. Trabalhar em equipa é diferente. Todo o método escutista proporciona o trabalho em pequenos grupos. É o chamado sistema de patrulhas, uma espécie de pequena república onde cada um tem uma função. Isso obriga a cooperar. Não sou eu que mando mensagens para todos, não é uma coisa unidireccional, mas é cooperativa, obriga a concessões, que é o normal nas relações. Nos desafios do dia a dia, solidificam-se as relações. Ter as pessoas a trabalhar num projecto comum, obrigá-las a relacionarem-se, a descobrirem-se e a ultrapassarem os preconceitos. Hoje estamos com mais pessoas mas a profundidade da relação é muito menor, é superficial. 

Foi aí que encontrou os amigos para a vida?

Sem dúvida. Quando estamos muito focados numa coisa é um processo natural.
As marcas deixadas por essa aprendizagem reflectem-se no resto da vida. Escuteiro uma vez, escuteiro para sempre.

É assim?

Tudo é baseado num conjunto de valores que se entranham. Não estou a falar da formação de santos mas de valores e convicções que ficam connosco, tornam-se parte de nós próprios. É uma espécie de hardware interior construído com base nessas emoções e experiências fortes. Depois é uma questão de software: a capacidade de trabalhar em equipa, de saber relacionar-se, de arranjar uma solução, de desenrascar, de ter mentalidade de projecto. Todo um conjunto de skills (competências) que hoje se valorizam. É curioso ver o que hoje os empregadores procuram. Não é o conhecimento académico mas competências como capacidade de liderar ou espírito de iniciativa. No escutismo, isso entranha-se em nós. Não somos escuteiros para a vida. O escutismo é uma passagem. O que tentamos é ajudar os que por cá passam a serem cidadãos activos. Temos de perceber se o que é útil é ensinar a fazer um currículo ou a arranjar competências para montar um emprego.

Costuma defender que os escuteiros devem criar mais impacto na comunidade. Como é que isso se mede? Gostava de ver mais escuteiros envolvidos na política, à frente de grandes empresas e organizações? É isso?

Isso já acontece mas gostava que se soubesse mais. Há escuteiros muito bem colocados mas não há essa relevância. O que fazemos deve ter significado, impacto pessoal na vida de cada um e das comunidades. As pessoas continuam a ter uma imagem estereotipada dos escuteiros. Os americanos fazem isso muito bem: quando há um CEO de uma empresa conhecida ou um astronauta, dizem logo: este foi escuteiro.

Ainda há uma imagem depreciativa dos escuteiros?

Em alguns sítios ainda há estereótipos. Mas não é a visão dominante. Muitos cidadãos ainda vêem o escutismo como uma bela  ocupação de tempos livres e desconhecem o impacto formativo que tem na vida dos jovens. Mas ao nível local, nota-se bem o impacto e o enraizamento na comunidade. Não é uma experiência toque e foge, o compromisso e o envolvimento são enormes.

Mas é hoje mais difícil criar este envolvimento por parte dos pais e dos jovens?

Os pais hoje estão mais envolvidos do que estavam antes. Em relação aos miúdos, é mais difícil cultivar esse compromisso porque têm muitas solicitações que os fazem dispersar. Sejam o jogo de futebol, as festas, os fins-de-semana dos pais separados, etc.

Como chegou a chefe mundial?

As coisas foram acontecendo. Sempre estive no agrupamento na Figueira da Foz. A minha primeira experiência internacional foi o Jamboree da Holanda, um acampamento mundial em 1995. Depois organizei o Rover Way [encontro mundial de jovens adultos] em 2003, em Portugal. Nessa altura abriram candidaturas ao Comité Europeu e eu entrei. Estive lá seis anos. Em 2011 fui para o Comité Mundial onde estive três anos. Agora fui reeleito, como presidente.

Como é liderar um movimento que está em África, América do Sul ou Estados Unidos?

O maior desafio é a diversidade. Em África, o escutismo dá ferramentas de curto prazo e ajuda na formação de jovens para que estes possam montar o seu pequeno negócio. Actua-se muito ao nível da subsistência. Nas Filipinas ou no Brasil tenta-se levar o escutismo aos miúdos da rua, trabalhando ao nível da prevenção da delinquência. É quase um programa de salvamento de vidas. Na Europa, podemos dar-nos ao luxo de ter esta reflexão mais educativa e pedagógica, a médio e longo prazo. A ideia base em todo o lado é a de ser uma força para criar um mundo melhor. O escutismo tem esta capacidade de se adaptar e responder às necessidades da sociedade em que se insere. Há ainda  países como China ou Cuba que ainda não têm escuteiros.

Foi isto que esteve na base do escutismo pensado e fundado por Lord Baden Powell?

Ele teve esta percepção. Na sociedade inglesa do princípio do século, os miúdos estavam sem valores, um pouco ao abandono. Baden Powell pensou em algo que pudesse atraí-los, que fosse divertido, e os fizesse sair deste estado de abandono. Pensou em valorizar a juventude mas colocando os jovens no centro. Sendo militar, agarrou na vida de campo e aproveitou-a, pois era um ambiente estimulante para eles inventarem as suas próprias soluções. Durante a guerra na África de Sul, houve também um episódio que o marcou. Esteve numa cidade que ficou cercada durante muito tempo. Deu algumas tarefas aos miúdos (levar mensagens para fora) e percebeu que eles conseguiram assumir algum protagonismo e desempenhá-las com competência. 

O método escutista e o seu programa educativo passa por valorizar a juventude, é isso?

O centro do processo educativo é valorizar a juventude. Não há uma educação formal, em que um professor/chefe está ali para ensinar. Tenta-se, por outro lado, criar um ambiente para os miúdos aprenderem. É neles que deve estar o foco. É assim que aprendem melhor. O erro é um elemento educativo fabuloso. No escutismo aprende-se fazendo, há oportunidade para errar e tentar outra vez. Ao ter essa possibilidade, o jovem pode melhorar. O nosso fundador já dizia que é fácil instruir cem pessoas num pelotão mas transformar a sua vida é muito diferente, tem de ser feito numa abordagem mais personalizada. Actualmente, na sociedade é tudo ao contrário: só se quer o sucesso, é tudo muito rápido, não se pode falhar, há um ritmo alucinante, é preciso fazer tudo à primeira e rápido. Além disso, há os elementos mais exteriores que também são importantes, como o lenço e o assumir o compromisso através de uma promessa. 

O que faz o Comité Mundial?

Define as linhas para manter a unidade da organização, tendo em conta a diversidade, as necessidades e climas económicos e sociais tão diferentes. Isso faz-se através da definição de políticas que obrigam todas as organizações. No comité somos todos voluntários mas depois há um braço armado profissional que implementa a estratégia.

O que decidiram nesta última conferência?

Aprovámos uma política de incentivo às associações para que os jovens sejam mais envolvidos nos vários processos, desde a patrulha, até ao nível mais institucional. Ou seja, incentivá-los a participarem mais a nível externo, nas associações de estudantes, nas organizações locais, etc. Sendo um movimento de educação não formal, pode haver o risco de o processo estar centrado no adulto. Isso acontece em locais como a Ásia, onde há uma ligação muito forte entre escutismo e escola. Muitos dirigentes são professores e as infra-estruturas são comuns. No Japão, há uma reverência com os mais velhos, não podemos chegar lá e dizer que os chefes têm de ter no máximo 40 anos. 

Como é visto lá fora o escutismo português?

Como tendo ainda no seu DNA os valores originais. A relação com a comunidade é das coisas mais valiosas que o escutismo tem e que cá isso é muito forte. Há também um grande sentido de militância, que pode ser bom mas também tem alguns riscos. Eu não passo pelos escuteiros, quando sou, sou a sério. Mesmo a nível dos recursos adultos, para se ser dirigente é preciso dar tudo, e hoje não há muitas pessoas com essa capacidade, até por questões profissionais.  

rita.carvalho@sol.pt