Processo Face Oculta: Acabou a impunidade em Portugal?

  

 

1. Estávamos nós a escrever sobre a actuação de Paula Teixeira da Cruz à frente do Ministério da Justiça – e o que se traduz, afinal, numa reflexão sobre a Justiça Portuguesa – quando a decisão final, em sede de primeira instância, do Processo Face Oculta foi lida, no Tribunal de Aveiro. As reacções da opinião pública e publicada foram imediatas – e diversiformes. Para uns, a condenação de Godinho, Armando Vara e Paulo Penedos representou uma nova fase da vida da Justiça Portuguesa, em que os “poderosos”, a partir de agora, poderão ser condenados; para outros, representou um sinal de exteriorização do descontentamento dos juízes face aos cortes salariais que sofreram, sendo um acto de “vingança” imposto aos que contribuíram para a delapidação dos recursos públicos; finalmente, para uma minoria intelectual (ou “intelectualizante”) a condenação, sobretudo de Armando Vara, constituiu uma forma de protagonismo excessivo dos juízes do Tribunal de Aveiro. Isto porque a pena aplicada aos condenados (mediáticos) revelou-se claramente excessiva – dizem. Esta última tese foi advogada por comentadores do late night show de um canal de notícias português: estes criticaram até a” qualidade técnica” do Acórdão. Sucede, porém, que nenhum dos comentadores é formado em Direito ou, pelo menos, se dedicou ao Direito – e nenhum deles seguramente é especialista em Direito Penal ou Processual Penal. Logo, criticar tecnicamente a decisão por parte de quem não é jurista – parece-nos uma situação descabida. Significa isto que as críticas ou observações sobre as decisões jurisdicionais devem ser reservadas à “comunidade de juristas”? Não: as decisões dos tribunais são actos públicos e, logo, sujeitos às críticas dos cidadãos individualmente consideradas, e da comunidade política, em geral. Podemos criticar as consequências sociais da decisão. Podemos colocar em causa a razoabilidade dos juízos feitos pelos magistrados. Podemos duvidar das suas repercussões políticas – mas quem não tem formação técnica em Direito, consideramos complexo que possa apreciar o apuro técnico da decisão do tribunal! Seria o mesmo que nós – formado e docente de Direito – comentar aqui a habilidade técnica do Chefe José Avillez! Ou então criticar o “apuro técnico” da nova construção de Siza Vieira! Porque, normalmente, dá asneira. E no caso dos comentadores deu asneira, isto é, caíram num raciocínio populista e falacioso.

2. Qual foi essa falácia? A de que o juiz de Aveiro foi demasiado severo na pena aplicada a Armando Vara, porque, num processo de escravatura, foi aplicada ao condenado, pelo Tribunal do Porto, uma pena inferior. Ora, a escravatura é mais grave do que o crime de corrupção e tráfico de influências – logo, a pena de Vara deveria ser inferior. Pois,…só que este raciocínio é completamente errado –e coloca em causa princípios fundamentais do Estado de Direito. A decisão jurisdicional, em sede penal, resulta do enquadramento dos factos provados no tipo criminal – o tipo criminal, em termos simples perceptível para todos, é o facto que o legislador considera de tal forma grave para a vida social, que merece a censura da comunidade. Para preencher o tipo, o legislador prevê vários elementos (i.e, circunstâncias que permitem identificar uma conduta com um crime – por exemplo, no crime de homicídio, os elementos são: “quem matar outrem…”) – e esses elementos têm que estar todos reunidos para que se possa imputar a prática desse crime a um cidadão. Para além dos elementos do tipo criminal, o legislador prevê a chamada moldura penal. O que é a moldura penal? É o intervalo de número de anos de pena (normalmente, de prisão) que o juiz pode aplicar a alguém como sanção pela prática do crime. Para chegar ao número de anos de prisão em concreto, o juiz tem que ponderar os factos provados –e a culpa revelada pelo agente no cometimento do crime . É evidente que quanto mais eficiente for a investigação do Ministério Público, mais eficazmente são provados os factos imputados – logo, mais consistente se torna a formação da convicção do juiz sobre a culpabilidade dos agentes. Ora, no caso do processo Face Oculta, o juiz elogiou a actuação do Ministério Público, a eficácia na recolha dos elementos probatórios – determinante na revelação da verdade material e, logo, na sua convicção de que os condenados praticaram os crimes. Ora, estando demonstrado a prática dos crimes e o elevado grau de culpabilidade dos agentes, o juiz tem de determinar a pena, face ao que dispõe a lei: tem de aplicar uma pena próximo do limite máximo legal. Estranho seria se o juiz formasse a sua convicção de que Godinho e Vara actuaram com noção exacta de que estavam a praticar um ilícito com graves danos sociais –e, depois, aplica-se uma pena reduzida! Não faria sentido – e seria contrário ao que se chama “hermenêutica jurídico-penal”.

3. Daqui resulta que as decisões dos juízes não se baseiam numa comparação de casos ou de crimes: qual é que o mais grave. A gravidade do crime não é definida pelos juízes – é pré-determinada pelo legislador. Mas a escravatura não é mais grave do que o crime de corrupção? Nós temos entendido que os crimes contra as pessoas (vida, integridade física, autoderminação sexual…) são sempre mais graves do que os crimes económicos – porque está em causa o princípio basilar da nossa República: a dignidade da pessoa humana. Mas a crítica que fazemos é ao legislador que considera mais graves certos crimes económico-financeiras do que crimes contra a pessoa: não aos juízes que aplicam as leis! Alguém imagina que o juiz de Aveiro, antes de decidir, iria ligar ao juiz do Porto para saber qual a pena que iria aplicar no crime de escravatura? Era só o que faltava! Seria a negação do Estado de Direito e do princípio da legalidade penal!

4. Dito isto, constatamos que há uma certa elite que passa a vida a criticar a Justiça portuguesa porque nunca condena os poderosos – mas quando condena alguém poderoso, a mesma elite acha sempre que a Justiça foi demasiado severa e sedenta de protagonismo! Esta mesma elite (por exemplo, Clara Ferreira Alves) quer à força que Oliveira e Costa vá para a prisão, e que Cavaco Silva seja condenado pela sua ligação ao BPN pela Casa da Coelha (e nunca houve nenhuma acusação contra Cavaco!) – mas, quando se trata da condenação Armando Vara, já consideram que a Justiça é muito dura! Porquê? Porque os primeiros têm ligações ao PSD – e o segundo é socialista! Por nós, defendemos a mesma doutrina, quer se trate de alguém do PSD, quer se trate do PS: quem comete ilícitos criminais, deve ser punido!

5. O único problema do julgamento do Face Oculta é a de que a boa actuação do Ministério Público foi elogiada como se fosse algo inédito! Algo excepcional! Ora, uma actuação eficaz da entidade a quem compete a direcção da investigação criminal tem que ser a normalidade – e não a excepcionalidade! Quando uma decisão jurisdicional ou os próprios juízes começam a ser notícia é um mau sinal para o Estado de Direito.

6. O texto de hoje já vai longo: a importância do assunto justifica-o. Limitamo-nos hoje à análise jurídica da decisão do Processo Face Oculta. Há que ver as consequências políticas. E são várias – e muito relevantes. Por muito que certos políticos queiram iludir os portugueses, a condenação de Armando Vara deixou e vai deixar muita gente sem dormir. Muitas ambições políticas poderão ter morrido na sexta-feira. Falaremos a breve trecho do aspecto político do Face Oculta.

Bom domingo e que Portugal ganhe 3-0 frente à Albânia!

P.S – Para saber mais sobre o Processo Face Oculta é ler o livro exemplar de Joaquim Gomes : “ Face Oculta com Rostos”, Rui Pinto Editores.

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