Na favela, Marina ‘vive’ ao lado de Susana, a professora de baixa médica

Susana, chamemos-lhe assim, 46 anos, está com o neto de três ao colo à porta da sua casa. A tarde está quente e o movimento na rua é atípico, dizem os locais. Há fotógrafos, carros de exteriores das televisões, jornalistas e uma pequena multidão que desce as ruas íngremes, já alcatroadas, do bairro Jardim Arujá, em…

É dia de campanha paras as presidenciais do Brasil na favela. Marina Silva, candidata do PSB, está para chegar para inaugurar mais uma ‘Casa Beto e Marina’ (o nome do candidato a vice na chapa está antes da candidata a Presidente porque é mais sonoro, explicou fonte da campanha), próxima da casa de Susana. As ‘Casas Beto e Marina’ são residências privadas de cidadãos que se candidatam a ser embaixadores locais da campanha da coligação ‘Unidos pelo Brasil’. São casas autorais que ganham visibilidade na comunidade por causa dos cartazes que passam a estar colados na fachada das casas. Não há, oficialmente, dinheiro envolvido nesta iniciativa que soma até agora 600 casas em todo o Brasil e 140 só no estado de São Paulo. 

“A Marina? O que é que ela vem cá fazer? Os políticos só sabem vir à favela quando estão em campanha”, começa por dizer Susana, de voz trémula e inquieta, enquanto entrega o neto aos brinquedos para acender um cigarro. Votou em Lula em todas as eleições que o elegeram e em Dilma, há quatro anos. Este ano não vota. Prefere pagar uma multa de cerca de 10 euros, porque o voto no Brasil é obrigatório, a reeleger ou penalizar Dilma com a transferência de voto para outro candidato. “Isto está tudo igual. No papel, os projectos são bem intencionados, mas eles não sabem o terror que é estar numa sala de aula e deixam-nos assim, neste estado”, sugere. 

’Não vamos desistir do Braisil’ é o slogan da candidatura de Marina Silva. No Jardim Arujá, Susana é uma professora do ensino básico que desistiu. Nos últimos anos, tentou o suicídio três vezes. A último foi em Maio. Diz que não lhe apetece carregar durante muito mais tempo o peso de um sonho que foi construído à revelia do pai, que a avisara vezes sem conta que dar aulas não era pêra doce, e que acabou destruído pelas mãos de alunos já adultos e beneficiários de um programa de alfabetização. Os mesmos que pensava ser possível mostrar que há mais vida além da favela, da droga e do crime. 

Estamos em 2008. Lula havia de ser reeleito para novo mandato dois anos antes. As favelas passariam a chamar-se comunidades. Uma questão de semântica e de maquilhagem. O programa Bolsa Família – espécie de Rendimento Mínimo Garantido, em Portugal – começa a dar os primeiros passos. É noite e Susana está de regresso a casa. Passara o dia fechada numa sala com 50 alunos, de várias idades e diferentes níveis de conhecimento. Numa ruela da favela, é violada por um aluno e dois amigos deste. Não estava ninguém na rua. E mesmo que estivesse, ninguém fazia nada. “As armas silenciam-nos. É a diferença entre a vida e a morte”, resume. 

Depois de ficar abandonada na rua, foi para o hospital. “A minha preocupação eram as doenças. Só queria fazer exames”, explica. À polícia, disse que não se conseguia recordar de quem a havia violentado daquela forma. Ou seja, não revelou a identidade dos agressores. “Os bandidos aqui estão feitos com a polícia. Eles conhecem-se”, acusa. Manteve o mesmo princípio de não denunciar os violadores aos médicos. O marido não sabe que ela foi violada. “Digo que estava a ser ameaçada”. Aos três filhos – um enfermeiro, um estudante de engenharia mecânica e uma jovem menina que interrompeu o curso de Administração por causa de uma gravidez inesperada – contou a verdade um ano depois da violação. “Senti-me minúscula”, lembra. 

As ameaças aos professores na escola da comunidade vizinha são frequentes. Tanto que toda e qualquer queixa que chega à direcção da escola é atirada para o lado com um ’Não somos a polícia’, garante a professora. Susana chegara a esta escola no ano anterior, depois de trabalhar 12 anos numa escola do seu bairro. “Aquilo é barra pesada”, admite. O aluno violador, na casa dos 30 anos, já havia prometido vingança por não perdoar a denúncia da professora. “Ele é traficante de droga e ia para a escola ameaçar os colegas, com armas. Levava os negócios da rua para a sala de aula”, explica. 

Num Brasil que tenta ainda o acesso igual dos utentes aos cuidados de saúde, é Susana quem paga psicólogo, psiquiatra e medicamentos. Tudo em hospitais privados porque as listas de espera nos hospitais públicos são impróprias para quem vive atormentada. A baixa médica já dura há seis anos. Entretanto, Susana começa a receber carta da Junta Médica para que este organismo avalie a capacidade ou não de Susana voltar à escola. “Eu não posso voltar entrar ali dentro. Os meus pertences ainda lá estão. Nunca mais lá voltei. Nem volto”, assume. 

Cá fora, Marina Silva, que pediu a demissão de professora no final do ano passado, e a sua caravana fazem a inauguração da casa. No final, a candidata fala com os jornalistas. Na curta declaração, diz-se “vítima de ataques” da campanha de Dilma Rousseff. Sinaliza a vontade de “mudança que se percebe na sociedade brasileira”e promete investimento na educação, para beneficiar alunos e pais, nomeadamente através da criação de programa de tempo integral para que as crianças possam ficar na escola até mais tarde enquanto os pais trabalham.

Susana, depois de mostrar os documentos da perícia médica, para não deixar qualquer tipo de dúvida sobre o que acabara de relatar, pede licença e fecha a porta. "Não me peça para falar mais", pede ao jornalista. 

ricardo.rego@sol.pt