Viver para Contar

O medo da morte é um fantasma presente em todas as civilizações. A morte inspira receio e respeito. Também por isso,  quando uma pessoa morre torna-se invariavelmente um santo. De um dia para o outro, deixa de ter defeitos. Os patifes em vida transformam-se em pessoas respeitáveis, estimáveis, bondosas mesmo. E os seus piores inimigos…

Há uma hipocrisia nos elogios fúnebres que resulta desse medo que a morte inspira – mas igualmente do facto de os mortos já não fazerem sombra a ninguém. Em vida, pode não ser conveniente fazer elogios a uma pessoa, não vá ela passar-nos à frente e tirar-nos o protagonismo ou o lugar. Mas não há perigo nenhum em elogiar um morto.

Esta coluna chama-se Viver para Contar e convive mal com os epitáfios. Quando alguém morre, prefiro retratar aqui o homem real, de carne e osso, com as suas virtudes e os seus defeitos, do que falar do defunto a quem todos se referem com piedade.

Quando faleceu José Saramago escrevi uma crónica que terá escandalizado muita gente mas que correspondia ao que eu pensava dele. Gostei de alguns dos seus livros, não gostei de outros, mas sobretudo detestei o seu comportamento ultra sectário quando foi subdirector do Diário de Notícias, e assisti a cenas que não abonavam a favor da sua humanidade. Também achei lamentável ter retirado do Memorial do Convento a dedicatória a Isabel da Nóbrega – que foi sua mulher e cujos olhos inspiraram a figura de Blimunda -, dedicatória essa constante das primeiras edições. 

Num texto sobre a morte de Saramago eu não conseguiria omitir alguns destes factos que ajudavam a traçar um retrato mais próximo (e não maquilhado) do homem e do escritor. 

Aconteceu o mesmo num dos aniversários da morte de Sá Carneiro. Quando toda a gente, mesmo os seus inimigos de então, se limitava a elogios piedosos, escrevi o que pensava sobre ele. Referi o seu carisma mas não omiti uma certa forma irritante que tinha de fazer política, mantendo com o então Presidente Ramalho Eanes um conflito em que passou todas as marcas. E também não soube preservar a dignidade da sua primeira mulher e mãe dos seus filhos, sujeitando-a a algumas desconsiderações públicas. 

Há duas semanas, escrevi sobre a morte de Emídio Rangel e segui exactamente o mesmo princípio. Tentei, através de pequenas histórias em que nos cruzámos, fazer um retrato sucinto do jornalista e do homem: o jornalista dinamizador de projectos, com grande capacidade de mobilização, e o homem com vários defeitos que se envolveu numa relação amorosa devastadora, arrastando-se a si próprio e à mulher, Margarida Marante, para o abismo.

O espírito desta coluna, como ficou dito atrás e o nome indica, é relatar momentos que vivi. A propósito de factos actuais, recordo episódios passados comigo, registo impressões, revelo conversas que tive com esta ou aquela figura. Quando falo de uma cidade, de um monumento, de um acontecimento ou de uma pessoa não o faço anodinamente – mas sim da minha relação com essa pessoa ou realidade. 

De certo modo, são textos anti-jornalísticos. O jornalismo obriga ao apagamento e à despersonalização do repórter.

Segundo a cartilha, uma reportagem deve ler-se como se o autor não existisse. Em teoria, um texto escrito pelo jornalista A ou B deveria ser idêntico. 

Ora, a ideia desta coluna é precisamente a contrária: o autor coloca-se no centro da acção e fala da realidade em função do seu relacionamento com ela.

Ao longo de mais de 30 anos a dirigir jornais – primeiro o Expresso e depois o SOL – falei a sós, como se imagina, com imensa gente colocada em lugares de decisão: Presidentes da República, primeiros-ministros, ministros, dirigentes políticos, presidentes de bancos, empresários. Muitas dessas pessoas falaram comigo abertamente, confiando-me coisas que, nalguns casos, teriam provocado terríveis zangas ou até graves conflitos políticos. 

Aproveitando parte deste material – e também diversos acontecimentos da minha vida pessoal e profissional que considerei de algum interesse público – escrevi dois livros de memórias: Confissões de Um Director de Jornal e Confissões II. 

Criticando o segundo destes volumes, José Pacheco Pereira referiu em tom azedo que qualquer dia ninguém falaria comigo – pois eu escarrapachava nas páginas dos livros conversas de índole pessoal. Mas isso nunca aconteceu. As pessoas continuam a falar comigo abertamente. Porquê? Porque sabem que sempre respeitei os limites. Sempre procurei separar o que era publicável do que era simples indiscrição ou podia ter consequências gravosas para o meu interlocutor. Sempre estive longe, muito longe, de contar tudo o que sabia. Nunca traí a confiança daqueles que me fizeram confidências ou inconfidências.

Acresce que muitas conversas só foram divulgadas bastante tempo depois. Algumas, só passados vinte ou trinta anos. 

Alguns considerarão estas crónicas um exercício de narcisismo – e percebo que sejam vistas assim. Mas, na minha cabeça, elas significam o gosto da partilha com os meus leitores de vivências que me parecem de interesse geral. Ou, então, de factos que, dada a minha posição de testemunha privilegiada da realidade portuguesa, observei directamente e têm indiscutível relevância pública. 

O modo como nasceu o célebre tabu de Cavaco Silva, o telefonema que ditou o arranque da candidatura presidencial de Jorge Sampaio, certas peripécias do nascimento da SIC, a forma como surge a ideia de fazer o SOL quando eu era ainda director do Expresso, tudo isso ficaria soterrado pela poeira do tempo se não o tivesse registado.

Eu gosto de viver para contar. Os leitores gostarão ou não de ler. Mas como ninguém os obriga a fazê-lo, o mais que pode acontecer é o desperdício de duas páginas desta excelente revista. 

jas@sol.pt